Testemunhos
O testemunho de Eva Clarke, que é também a sua missão de vida, justapõe uma grande história – a da Segunda Guerra Mundial, do regime nazi e do Holocausto – a inúmeras pequenas estórias.
Um testemunho é uma experiência que se partilha. Por vezes, partilham-se experiências que nunca deveriam ter acontecido. Um testemunho destes pode assumir muitas formas. Há quem prefira a companhia de família ou amigos. Noutras ocasiões, é necessário testemunhar em Comissões de Verdade ou em tribunal perante um juiz. Outros há que optam por testemunhar no confessionário de uma igreja ou em sessões de psicoterapia. Encontramos também testemunhos em jornais, em documentários, em instalações artísticas. E há quem testemunhe perante si mesmo. Já Eva Clarke decidiu passar a sua vida a testemunhar para o maior número de pessoas possível. O seu testemunho? O de uma sobrevivente do Holocausto, hoje com 74 anos, dois filhos e vários netos.
Há dias, tive oportunidade de ouvir o seu testemunho – uma sessão multimédia de uma hora – em primeira mão. Como todos testemunhos, o testemunho de Eva Clarke combina palavras ditas, palavras escritas e imagens. Como muitos testemunhos, o de Eva Clarke é pessoal. Refere-se à sua família e, em particular, à sua mãe. É verdadeiro: é aquilo que ela crê ter acontecido. E, não menos importante, está permeado de lições de vida. Primeira lição: é importante não esquecer. Segunda lição: relembrar ajuda-nos a perceber que é possível que volte a acontecer. Terceira lição: é imperativo não deixar que volte a acontecer. O seu testemunho, que é também a sua missão de vida, justapõe uma grande história – a da Segunda Guerra Mundial, do regime nazi e do Holocausto – a inúmeras pequenas estórias.
Estas estórias, entrelaçadas no testemunho de Eva Clarke, podem ajudar-nos a mudar a história. Muitas vezes, fazem-nos refletir sobre a política. Por vezes, até sobre a nossa própria vida.
Algumas destas estórias mostram a força da rotina. Eva Clarke explica-nos como, no final dos anos 30, a maioria dos judeus acreditava que, apesar das crescentes restrições à sua liberdade, iriam conseguir manter as suas vidas mais ou menos na mesma. Em poucos anos, esta ilusão de continuidade na adversidade revelou-se fatal para milhões deles.
Outras estórias mostram a importância da sorte. Eva nasceu no dia 29 de abril de 1945 em Mauthausen, um dos mais temíveis campos de extermínio. A taxa de mortalidade em Mauthausen era de quase 50%. Eva só nasce no dia 29 porque as câmaras de gás haviam sido destruídas pelos americanos no dia anterior, que haviam libertado o campo dias antes.
Outras estórias são perversas. Em Auschwitz-Birkenau, onde a mãe de Eva, Anka Kauderová, havia estado internada em 1944, era permitido a prisioneiros que enviassem um postal de correio aos seus familiares e entes queridos. Quando em dificuldades, a tendência de muitos de nós é de não dar parte fraca. Os postais de Auschwitz mostram isso mesmo: “Por aqui, tudo bem; o pequeno Peter manda beijinhos.” Na realidade, estes postais mais não eram do que um ardil. Um ardil engendrado para enganar quer os seus destinatários, transmitindo-lhes uma imagem de normalidade da mais eficiente máquina de morte alguma vez criada, quer os seus remetentes, mortos em câmaras de gás horas depois de os escreverem.
Outras estórias são trágico-cómicas. Anka, a mãe de Eva, voluntaria-se para ir para Auschwitz. Sem saber que este era um campo de extermínio, Anka queria voltar para junto do seu marido. Consigo leva apenas alguns pertences e uma caixa de cartão. Dentro da caixa, donuts, os favoritos do seu marido. Estes donuts entram consigo no comboio que a irá levar a Auschwitz-Birkenau. O pai de Eva, morto a tiro meses antes, nunca chega a provar os donuts – nem a saber da segunda gravidez da sua mulher.
Outras estórias são sobre os limites do corpo humano. Eva é concebida em Theresienstadt, meses antes de os seus pais serem separados. Quando nasce, Eva pesa um quilo e quatrocentas gramas. A sua mãe é pele e osso: pesa 35 quilos. Contra todas as expectativas, ambas sobrevivem a Mauthausen. Como Eva hoje nos conta: “A melhor incubadora foi a minha mãe, que nunca me largou.” Os três anos seguintes são passados em Praga, na casa da prima a quem Anka havia escrito um postal de Auschwitz: as três são das poucas sobreviventes de uma família com dezenas de pessoas vítimas do Holocausto.
A experiência judaica do Holocausto, em parte reconstituída a partir de testemunhos como os de Eva Clarke, deu origem a uma linha de pesquisa original em filosofia em torno de questões como: O que significa perdoar? Quais os limites do perdão? Qual a importância da memória para a constituição da identidade individual e coletiva?
Mas há limites à representação da realidade. Há momentos em que traduzir em palavras o que se sofreu é simplesmente impossível tal a enormidade da violência e perversidade sofridas. Como descrever o inominável? Exemplos do inominável ao longo da História não faltam. O Holocausto é apenas um exemplo. E, muitas vezes, há pelo menos uma testemunha disposta a partilhar a sua experiência. Mas, como muitas testemunhas nos dizem, ainda que seja possível falar sobre o assunto e descrever as atrocidades com palavras, a experiência do horror que viveram resiste a ser traduzida em palavras. É como se as palavras, quaisquer que elas sejam, uma vez pronunciadas, se esfumem em contacto com o ar. O que estes testemunhos nos ensinam é que há algo que profundamente moral na recusa em representar – por palavras ou doutra forma qualquer – certas violações do corpo humano. Para se continuar a viver depois destas violações é necessário aprender a conviver com memórias envenenadas; digerir diariamente este conhecimento envenenado implica aprender a respeitar a fronteira entre o dizer e o mostrar.
Talvez seja esta a função pública das ciências sociais e humanidades. Por um lado, produzir evidência factual que desmonte formas de amnésia oficial e coletiva, incluindo tentativas de sonegação de informação inconveniente. Por outro, testemunhar as tentativas de retomar uma vida normal por parte das vítimas e sobreviventes. Porque é voltando ao quotidiano que vítimas e sobreviventes conseguem regressar à vida, uma vida separada da circulação das palavras. Uma vida recatada. Um recato forjado no indizível do horror.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico