João Ataíde, memória e exemplo

Magistrado, autarca e deputado, de grande integridade, absteve-se na Assembleia da República na votação da eutanásia e faleceu ao chegar a casa.

Há viver e há morrer. Sempre nas circunstâncias mais diferentes e, muitas vezes, mais insólitas. Foi o que se verificou agora com João de Ataíde. Homem do seu tempo, com posições ideológicas inequívocas para enfrentar a atualidade e uma clara visão integradora do futuro. Marcou a sua presença como advogado, como magistrado (membro do último governo) e, entre várias outras funções, como Presidente da Câmara da Figueira da Foz.

Em todos estes e outros cargos João Ataíde distinguiu-se pela dedicação, pela competência e abertura às situações concretas do quotidiano. Entendeu, também, a Figueira da Foz na sua extensão poliédrica: o conjunto natural, o mar, o rio e a serra; a realidade social, política e humana; o legado histórico, as solicitações do presente e os imperativos do futuro.

João Ataíde não se limitou à defesa e à valorização da paisagem, à urgência de viabilização de estruturas e infraestruturas fundamentais para assegurar as necessidades e as condições de vida da população. Evidenciou – se pelo respeito que lhe merecia a cidade, o concelho, o distrito e a própria região, no âmbito de um património material e imaterial incomum em relação ao País e também abrange um excecional conjunto de personalidades tão significativas e tão diversificadas; umas, naturais da cidade e do concelho; e outras, das suas periferias geográficas.

Há poucos dias, João de Ataíde marcou um almoço comigo – sem horas de acabar e discussões a propósito de quem iria pagar a conta –, a fim de elaborarmos uma proposta a submeter ao atual presidente da Câmara, Carlos Monteiro, e ao vereador da cultura, Nuno Gonçalves, para incluírem ou acrescentarem na agenda de 2020: os 60 anos da morte do poeta João de Barros e, também, os 60 anos da morte de Jaime Cortesão, cujo último texto que escreveu – e encontrei no espólio – foi dedicado à Figueira da Foz. O almoço – no qual deveria estar o nosso comum amigo António de Barros – foi adiado em consequência de ocupações inadiáveis.

 João Ataíde deslocou-se na última quinta-feira à Assembleia da República, como deputado do Partido Socialista. Não era uma sessão igual às outras. Estava na ordem do dia a eutanásia, uma questão cercada de controvérsias e repleta de manipulações. Ao exercer o direito de voto absteve-se. Tanto quanto presumo, agora, depois de votar confrontou-se, possivelmente, com sucessivas e dilacerantes interrogações.

Tinha-lhe recomendado, há meses, a leitura obrigatória do Drama de Jean Barois, de Roger Martin Du Gard, Prémio Nobel da Literatura, que, feitas algumas descircunstancializações pontuais e atualizadas as notas de pé de página, mantém a maior das atualidades. A reeditar, é de manter a escrupulosa tradução de António Lobo Vilela.

Pouco depois de chegar a casa, João Ataíde sentiu-se mal. As interrogações, porventura, voltaram a acentuar-se através da noite e da madrugada. As pulsações aceleraram. Parou o coração. Os fantasmas persistiram. E estrangularam-no. Nunca conseguiu libertar-se da interioridade secreta de rotinas ancestrais, desvincular-se de superstições e erradicar os terrores incutidos na infância e na adolescência. Estes estados de incerteza e dúvida precipitaram-lhe o fim.

Mas um facto é certo. Em face do irremediável, da viagem sem regresso do amigo querido e fraterno João Ataíde, que não voltarei a ouvir e a ver, cumpre apresentar condolências à família, e à Figueira da Foz, através do Presidente e vereadores da Camara Municipal, pelo muito que fez pela terra. Sempre de mãos limpas.

Resta apresentar, ainda, condolências a titulares de cargos judiciais, aos que dignificam e honram a profissão, num momento em que se assiste a uma crise da mais extrema gravidade, trazendo para o ruído  da praça pública os mais lamentáveis episódios pessoais, profissionais e institucionais: a denúncia da existência e do funcionamento próspero  de uma ou mais empresas pertencentes e  associadas a juízes aposentados e que alegadamente faturam milhões de euros por ano,  para efetuarem – em condições a averiguar pelas instâncias competentes, e  até aos mais pequenos pormenores e implicações –, as  peritagens e avaliações que terão prestado.

Será possível esquecer o espetáculo, também público do ódio indisfarçável – que ferve, uiva e explode – nos depoimentos proferidos por juízes e procuradores e que invadiram as televisões, os jornais, as rádios e as redes sociais? Será ainda possível assistir sem indignação, sem repulsa e sem perplexidade à lavagem de roupa suja de elementos de uma classe que é um dos órgãos de soberania e que, diante de todos nós, não hesitam a manifestar-se uns contra os outros?

No mínimo, e se forem apuradas todas as responsabilidades, estamos a assistir à generalização da máscara corroída e leprosa da Justiça. Perante isto – que suponho ainda no princípio –, a personalidade humana, a raiz ética e a autenticidade moral de todo o percurso de João de Ataíde constituem um exemplo. Raro. Edificante. Presente.

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