Aeroporto de Lisboa: ética precisa-se
A ideia de um aeroporto em Alverca tal como é defendido por um grupo de engenheiros é um disparate. Estes tristes espetáculos desprestigiam a Engenharia e a confiança dos cidadãos nela.
Conforme é sabido, após grande polémica, no início de 2008 foi decidida a construção de um Novo Aeroporto de Lisboa (NAL) no CT (Campo de Tiro) de Alcochete. Contudo, com o acordo celebrado pelo Governo de José Sócrates com a troika em maio de 2011 de modo a evitar a bancarrota do país, que obrigou a um pesado programa de austeridade durante os três anos seguintes, o processo ficou “congelado”.
Com a alteração das circunstâncias do país, o PET (Plano Estratégico de Transportes), de novembro de 2011 (já no Governo de Passos Coelho), assumiu a revisão dos pressupostos que tinham servido de base à decisão da construção do NAL, preconizando uma estratégia de ampliação da capacidade aeroportuária de Lisboa, através da maximização da capacidade do Aeroporto da Portela e a análise da conversão de infraestruturas aeroportuárias existentes na zona, para acomodar tráfego civil.
No final de 2012 foi então celebrado o Contrato de Concessão entre o Estado e a ANA (que passou a ser a concessionária de todos os aeroportos nacionais por um período de 50 anos): o Aeroporto da Portela seria mantido e a sua capacidade reforçada através da criação de um aeroporto complementar, a instalar num dos aeródromos da região de Lisboa. Foram estudadas várias localizações, tendo a “Equipa de Missão” encarregue do estudo concluído que a melhor opção seria a BA n.º 6, no Montijo.
Entretanto foi desenvolvido o processo de privatização da ANA, o qual ficou concluído no final de 2013, com a venda, em concurso público, ao Grupo Vinci, por mais de três mil milhões de euros. Portanto, as obrigações do Grupo Vinci são as decorrentes do acordo de concessão previamente celebrado entre o Estado e a ANA; tudo o resto são fantasias.
Contudo, o assunto continuou em stand-by, já que as prioridades do Governo eram a saída do programa da troika, o que foi conseguido no prazo previsto. Com a chegada do Governo de António Costa, muitos acreditavam na sua reversão, pelo que em janeiro de 2017 viram com surpresa a assinatura com a ANA de um “Memorando de Entendimento” com vista à concretização do Aeroporto do Montijo, o qual contemplava também a obrigação da ANA da realização de obras na Portela, de modo a melhorar a sua capacidade e funcionalidade.
A partir daqui recomeçou a polémica. Com muita desinformação e fake news à mistura, começaram, então, paulatinamente, a vir a terreiro opositores à solução “Portela+Montijo”. Os mais ativos eram, sem dúvida, os defensores da solução do NAL no CT de Alcochete.
No entanto, o Governo manteve-se inabalável, tendo sido apresentados publicamente no início de 2019 os planos da ANA para o Montijo e para a Portela: um aumento da capacidade aeroportuária para 45 milhões de passageiros por ano, superior portanto à de um NAL no CT de Alcochete (que era de 40 milhões), com um investimento global da ordem de 1100 milhões de euros (500 milhões no Montijo e 600 milhões na Portela), da responsabilidade da ANA. A função de hub continuava na Portela.
Apesar de se tratar de uma solução sensata e racional, as críticas continuaram a subir de tom, passando mesmo a ser usados argumentos grosseiramente falsos, como, por exemplo, dizer-se que o custo de um aeroporto na BA n.º 6 no Montijo seria superior ao custo de uma primeira fase de um NAL no CT de Alcochete.
Entretanto, foi apresentado pela ANA o EIA (Estudo de Impacte Ambiental) do Aeroporto do Montijo, o qual identificou um conjunto de impactes, mas considerados negligenciáveis ou mitigáveis. O EIA foi então submetido a consulta pública pela entidade de tutela destas matérias, a APA (Agência Portuguesa do Ambiente), até meados de setembro seguinte.
As pressões sobre a APA para que “chumbasse” o Aeroporto do Montijo eram agora fortíssimas. Para além da sobrevalorização dos efeitos do ruído e sobre a avifauna, foram mesmo invocadas as alterações climáticas, com alguns a dizer que “iriam provocar a inundação do aeroporto”. Conforme denunciado pelo autor num artigo publicado na edição de 19 de setembro deste jornal, o disparate era tão grande que “esqueceram” que o aeroporto vai ficar acima da cota 5, portanto, mesmo nos cenários mais pessimistas, uma tal subida do nível das águas nunca irá acontecer antes de vários séculos. Além disso, toda a zona ribeirinha de Lisboa está à cota 3, portanto, antes de o Aeroporto do Montijo ficar inundado, já grande parte de Lisboa não deverá existir…
Não se deixando impressionar por estas manobras, em 30 de outubro, a APA decidiu pela emissão da DIA (Declaração de Impacto Ambiental) do empreendimento, condicionada à adoção pela ANA de um conjunto de medidas mitigadoras ou compensatórias. Após negociações entre a ANA e a APA para a clarificação destas medidas, em 21 de janeiro último, a APA fez a emissão da DIA definitiva. O Aeroporto do Montijo tem, desde então, luz verde para avançar!
Contudo, os opositores ao Aeroporto do Montijo não se deram por vencidos e “tiraram um novo coelho da cartola”; um grupo de engenheiros veio propor uma nova alternativa, defendida num artigo publicado na edição do passado dia 10 deste jornal, com o sugestivo título “Aeroporto de Lisboa: o imperativo de corrigir um erro”.
Repisando argumentos contra o Aeroporto do Montijo (já desvalorizados pela APA), os autores propõem manter o Aeroporto da Portela, mas criar um Novo (grande) Aeroporto em Alverca, isto é, uma solução “Alverca+Portela”. A capacidade do conjunto passaria a ser de 60 milhões de passageiros por ano: um terço na Portela (20 milhões) e dois terços em Alverca (40 milhões), que passaria a ser o novo hub de Lisboa. Como a pista existente em Alverca não é compatível com a pista principal da Portela, seria construída uma nova grande pista dentro do Tejo, parcialmente sobre o mouchão da Póvoa, portanto em condições do mais difícil e caro que há. Quanto à aerogare seria construída na margem do Tejo, numa zona também bastante difícil, atualmente um pântano.
Espantosamente, foi apresentado como estimativa de custo do aeroporto em Alverca o valor de 1750 milhões de euros. Ora, isto não é sério, quando se sabe que para um NAL no CT de Alcochete (com capacidade idêntica), em que as condições dos terrenos são incomparavelmente melhores, se estima um custo da ordem de quatro ou cinco mil milhões de euros.
E há mais: muito preocupados com a possibilidade de, com a subida do nível do mar, o Aeroporto do Montijo (que, conforme foi referido, fica acima da cota 5) vir a inundar, esquecem que em Alverca os terrenos estão muito mais baixos, cerca da cota 1 a 2. E esta informação até é fácil de obter; basta consultar a Carta Militar de Portugal à escala 1:25000. Se não conhecem, é grave; se conhecem e procuraram esconder, não é sério.
Mas há mais ainda: movimentar 40 milhões de passageiros num aeroporto em Alverca iria provocar um aumento do tráfego na autoestrada A1 (entre Alverca e Lisboa) da ordem de 50 a 60 mil passageiros por dia, quando hoje ela já se encontra praticamente esgotada, perto dos 100 mil veículos por dia. Isto é, teria de ser construída uma nova autoestrada até Lisboa. Em suma, a ideia de um aeroporto destes em Alverca é um disparate.
Ora, a Engenharia é uma profissão de confiança pública e, por isso, o Estatuto da Ordem dos Engenheiros refere expressamente (artigo 143.º) que “o engenheiro, na sua atividade profissional, deve pugnar pelo prestígio da profissão e impor-se (...) por uma conduta irrepreensível, usando sempre de boa-fé, lealdade e isenção…”.
Estes tristes espetáculos desprestigiam a Engenharia e a confiança dos cidadãos nela.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico