Há aproximadamente um ano a Estação Primeira de Mangueira, uma das mais antigas agremiações do Carnaval do Rio de Janeiro, entrava na Avenida mais famosa do samba, a Marquês de Sapucaí, para estremecer o chão da cidade, enquanto contava e cantava uma História para Ninar Gente Grande, enredo que fascinou o país recém-saído de um conflituoso processo eleitoral, fazendo-o reflectir sobre uma história não contada nos livros tradicionais. O resultado foi a celebração de mais um título para um dos símbolos culturais mais proeminentes do Morro da Mangueira, em 2019.
Desafiando padrões e versões clássicas dos heróis nacionais e das cicatrizes ainda abertas do legado colonial escravocrata, a Mangueira desafiou o discurso de ódio e fez da Marquês de Sapucaí um grande pergaminho em que a arte reescrevia a história do povo brasileiro com seus mártires esquecidos e silenciados, finalizando o desfile com bandeiras em homenagem a alguns deles, como a vereadora carioca assassinada há quase dois anos, Marielle Franco.
O verdadeiro Carnaval carioca é — e sempre foi — subversivo por natureza. O samba é uma ode ao povo oprimido do Brasil. Em tempos em que a cultura, a arte, a democracia, as religiões de matriz africana e o povo negro têm sofrido repetidas violações de direitos no país, este ano a mensagem da maior festa popular do planeta não será outra senão: resistência popular. E a Mangueira surge, uma vez mais, com uma composição que certamente incomodará a cúpula do governo brasileiro nos próximos dias.
Com o título A Verdade vos fará livre, o samba da agremiação faz um claro apelo popular à situação da crescente desigualdade social, racial e de género nos últimos tempos no Brasil e, por meio de metáforas, assinala como seria o possível retorno de Jesus Cristo hoje e no Brasil de Bolsonaro. Desta vez, o menino de Nazaré nasce na favela carioca, com “rosto negro, sangue índio e corpo de mulher” e ganha o apelido de “Jesus da Gente”.
Filho de “pai carpinteiro desempregado” e de “Maria das Dores Brasil”, o menino vive nos morros cariocas ao lado dos que transitam diariamente “nas ladeiras” e nas “fileiras contra a opressão”. Da letra ousada do samba-enredo, a Mangueira questiona, após intenso uso da religião nos debates eleitorais do último pleito, se realmente o “povo entendeu o recado” daquele menino Jesus da Gente. Afinal, o acirramento dos ânimos sociais, segundo a letra, deflagrou o surgimento de “profetas da intolerância” num país comummente conhecido pela “cordialidade” com a diversidade que o engendrou.
A escola de samba finaliza o samba de 2020 com uma clara crítica ao actual Governo de Jair Messias Bolsonaro, eleito sob o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e com expressivo apoio das igrejas cristãs no Brasil e um discurso fortemente belicoso: “Favela, pega a visão/Não tem futuro sem partilha/Nem Messias de arma na mão”. No país em que os índices de violência doméstica só fazem crescer, em que o alvo maioritário das políticas de segurança pública permanece o negro residente nas periferias e em que os índios vivem um genocídio diário (por vezes, com omissão do poder público), a voz do Morro da Mangueira tem tudo para ressoar alto, uma vez mais, na apoteose e nos quatro cantos do Brasil (e do mundo). Desta vez, quem sabe, a verdade, irmã da igualdade, nos fará livres!