A demonização das manifestações na Índia hindu
A campanha lançada contra dissidentes e manifestantes, organizada por Modi e seus capangas do nacionalismo hindu, resulta num imenso dano ao legado de Gandhi e Nehru – uma ameaça à visão de uma Índia secular.
Num momento em que o país experimenta protestos amplos e violentos contra o governo do primeiro-ministro Narendra Modi, Marcelo Rebelo de Sousa pousa na Índia. Os protestos, que se estendem desde Dezembro do ano passado, tiveram origem em instituições académicas do Norte da Índia, e são compostos principalmente de estudantes de religião muçulmana. Estes opõem-se à nova lei de cidadania por ela excluir imigrantes muçulmanos advindos de certos países, negando-lhes cidadania indiana.
No dia 15 de Dezembro, grandes protestos iniciaram-se nas universidades de Aligarh Muslim e Jamia Millia Islamia. Os resultados da repressão foram diversos estudantes espancados, atacados com gás lacrimogéneo, detidos, presos; foram-lhe negados inclusive ajuda médica adequada. Essa violência sem precedentes provocou, por sua vez, uma solidariedade pan-indiana com os estudantes em protesto.
O governo de Modi justifica a violência estatal contra estudantes, desqualificando-os, representando-os como indivíduos frustrados e violentos. A secção 144 do Código de Procedimento Criminal Indiano proíbe a reunião de quatro ou mais pessoas na mesma área. Esse regimento, herança das regulações coloniais, é usado para criminalizar a dissidência estudantil e deslegitimar protestos, caracterizando-os como “antinacionais”. Vê-se um paralelo entre a violência lançada contra campus universitários e civis por hindus de extrema-direita e aquela exercida pelo controle colonial britânico.
O primeiro-ministro Narendra Modi é notório por ter presidido ao horrível massacre de 1000 muçulmanos no estado indiano de Gujarat, em 2002, quando ainda era ministro encarregado da região – isto, inclusive, rendeu-lhe o título de “Açougueiro de Gujarat”. As tensões entre hindus e muçulmanos já se estendem há séculos, apesar do sonho de uma Índia secular, sustentado pelo primeiro-ministro Jawaharlal Nehru. Sempre houve, na política nacional, uma certa islamofobia subjacente, que tem sido agravada por grupos fundamentalistas como o Bajrang Dal, Shiv Sena, RSS e seu sector político, o Partido Bhartiya Janta (BJP). Modi é um membro integral do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), uma organização fascista hindu, de carácter paramilitar, já banida três vezes por autoridades indianas devido a casos de violência contra muçulmanos. Gandhi foi assassinado por um membro do RSS.
Desde o seu início, em 2014, o governo nacionalista de Modi tornou-se um pesadelo, não só para uma vasta população muçulmana, como também para pessoas defensoras do secularismo, esquerdistas, liberais – em suma, um pesadelo para qualquer um que ouse criticar Modi e o nacionalismo hindu. O desejo do nacionalismo hindu é transformar a Índia numa nação hindu – onde minorias religiosas gozam do estatuto de cidadãs de segunda classe. Mesmo protestos pacíficos, neste contexto, são recebidos com uma repressão brutal, como testemunham inúmeros incidentes.
Na região de Uttar Pradesh, hoje governada pelo BJP, viram-se inúmeros protestos violentos contra o novo acto de emenda da lei da cidadania. Pelo menos 21 pessoas foram mortas pela acção policial; mais de mil foram detidas. Há diversas evidências de abusos policiais, espalhadas por diversos media, como a CCTV – evidências filmadas que mostram, por exemplo, polícias invadindo lares muçulmanos, destruindo a propriedade de famílias muçulmanas, assediando e atacando homens e mulheres, pilhando os seus bens, dinheiro e jóias. Muitos activistas alegam que tem sido exercido um “reino de terror” contra aqueles que protestam contra a nova lei da cidadania.
Os líderes do BJP repetem, diversas vezes, que quem integra os protestos é parte do “gangue tukde tukde”, termo utilizado para se referir a pessoas que querem dividir a nação, pessoas que não têm nos seus corações as melhores intenções para com a nação e seus interesses. O ministro da União, Anurag Thakur, levantou controvérsia ao endossar as massas, num protesto em Nova Deli, a entoar cânticos como “atirem nos traidores”. O governo de Narendra Modi estereotipou os protestos como antinacionais. Outro ministro, Giriraj Singh, insinua que homens-bomba (em clara referência à comunidade muçulmana) estão sendo treinados em Shaheen Bagh (centro dos protestos), em Deli – tudo isto seria parte de uma conspiração montada contra o país.
Citando os odiosos comentários dos líderes do BJP, a Amnistia Internacional alertou que a Índia está a tornar-se um lugar perigoso para protestos pacíficos. Também relatou que, na cidade nortenha de Varanasi, muitas pessoas que foram feridas enquanto protestavam temiam ser presas enquanto buscavam ajuda médica de hospitais próximos, ou mesmo de áreas distantes.
Mais de dez milhões de pessoas estão rodeadas por paredes de ferro, em Jammu e Caxemira, por protestarem contra a revogação arbitrária do Artigo 370, que garante direitos especiais a Caxemira – Estado de maioria muçulmana. Caxemira está bloqueada há já cinco meses – estão suspensos a Internet e a telefonia. Centenas de pessoas permanecem arbitrariamente detidas em Caxemira, como forma de conter os protestos. Diversos activistas e lideranças políticas de Caxemira foram impedidos de deixar o país. Em Agosto, Shah Faesal, do Movimento Popular de Jammu e Caxemira, foi impedido de deixar a Índia, e logo em seguida detido por tecer críticas às acções do governo. Em Setembro, um jornalista de Caxemira, Gowhar Geelani, foi impedido de viajar até à Alemanha, onde faria um curso de formação organizado pela Deustche Welle.
O governo alega que algumas dessas pessoas são meros “influenciadores”, “agitando” os outros contra o país; alega que elas poderiam “criar problemas” para a actual transição política que se dá em Caxemira.
A campanha lançada contra dissidentes e manifestantes, organizada por Modi e seus capangas do nacionalismo hindu, resulta num imenso dano ao legado de Gandhi e Nehru, uma ameaça à visão de uma Índia secular. Há pouca probabilidade de que a Índia vá ultrapassar esses problemas já num futuro próximo, ainda que ouçamos alguns ecos de uma resistência que toma a forma de uma segunda luta pela independência, dessa vez contra o fascismo hindu.
Na sua visita recente à Índia, Marcelo Rebelo de Sousa prestou homenagens a Mahatma Gandhi; contudo, teria sido mais interessante se o Presidente português tivesse, gentilmente, lembrado Modi que ele é herdeiro de Gandhi, e por isso deve respeitar protestos pacíficos. Tradução de Pedro Ribeiro da Silva