A eutanásia numa perspetiva realista, científica e humana
É bom saber que não se referendam a dor e o sentimento humano, estes que fazem parte e só dizem respeito à sensibilidade que cada um, em cada momento, condiciona à sua própria existência neste mundo. A Assembleia da República saberá respeitar a vontade, o espírito e a generosidade aqui subjacente.
Numa altura em que a Assembleia da República se prepara para deliberar sobre a magna questão que é a eutanásia, eis que se depara com muita indecisão ou imprecisão, senão mesmo demagogia na abordagem deste tema. Na parte que ora interessa dilucidar, o que parece estar em causa é: como lidar com uma pessoa que se encontra numa fase terminal. Como se sabe, estado terminal significa uma situação patológica idónea, clinicamente comprovada, para conduzir à morte.
É neste ponto que se torna forçoso trazer à colação uma outra figura – o testamento vital, que, na parte que ora importa, constitui juntamente com a eutanásia uma das faces da mesma moeda como adiante veremos. Como ponto de partida dir-se-á apenas que o testamento vital é reconhecido e regulado pela Lei n.º 25/2012 de 16.06. Em termos jurídicos, o testamento vital constitui o exercício de um direito na medida em que toda a pessoa tem “jus” à dignidade em todo o ciclo da sua vida, nomeadamente sobre as condições em que deseja morrer quando em estado terminal. O testador pode assim determinar que o seu falecimento seja digno, evitando que lhe sejam ministradas terapias de nulo efeito a fim de prolongar artificialmente uma vida não consciente, em suma, assegurar uma boa qualidade de morte. Neste aspeto, o testamento vital assemelha-se à ortonásia, que envolve uma relação médico/paciente ou família, por via da qual se procede à limitação de tratamento que prolonga a vida em caso de doença incurável e em fase terminal.
Já a eutanásia implica um ato consciente, controlado e assistido para provocar ou acelerar a morte de alguém, mesmo quando num estado de consciência mitigada, peça para que o processo da sua morte seja abreviado, para não sofrer ou evitar um estado doloroso. Tanto o testamento vital como a eutanásia têm como destinatário o paciente em estado terminal. O que os distingue, todavia, é que no 1.º evita-se prolongar a vida e na 2.ª há uma ação para abreviar a vida. Eutanásia constitui presentemente um crime; o testamento vital, não.
Neste ponto, há que indagar: “não prolongar a vida” será sinónimo de “abreviar a vida”? Parece que sim. Na verdade, prolonga-se ou abrevia-se o que ainda existe. O efeito que se virá alcançar, tanto num como noutro caso, é o mesmo – a morte.
No estado atual de evolução científica, é estulto pensar que um médico não saiba identificar um estado irreversível num doente terminal. Seja um caso de testamento vital ou uma súplica para abreviar a vida, a deontologia imporá que o médico aja por si, consciente e cientificamente, o que em termos do “timing” pode ou não coincidir com qualquer das manifestações do doente. Não existe assim razão para atribuir natureza criminal ao ato de eutanásia. Na atualidade, o móbil incriminatório assenta apenas no conceito de expressão “abreviar a vida”. Como se sabe, os códigos penais consagram a “vida” como o 1.º bem a merecer tutela penal e, a nosso ver, bem. Para muitos, porém, estar-se-ia perante um ato que invade a essência da vida, que “só a Deus é lícito tirar”.
Todavia, nesta apreciação estamos em domínios distintos: num, a singularidade da vida, numa conceituação naturalística ou metafísica; noutro, o da sua degeneração num corpo moribundo. Cedo ou tarde esta distinção fará vencimento em nome da dignidade da pessoa humana.
É bom saber que não se referendam a dor e o sentimento humano, estes que fazem parte e só dizem respeito à sensibilidade que cada um, em cada momento, condiciona à sua própria existência neste mundo. A Assembleia da República saberá respeitar a vontade, o espírito e a generosidade aqui subjacente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico