Leaks: tudo como dantes? Nada a mudar no Direito?
O Direito, ordem de convivência humana, orientada pela ideia de “ordem justa”, é parte integrante da realidade social, não uma abstração normativa saída da cabeça de iluminados.
“Sempre que o Homem sonha, o Mundo pula e avança…”! Sim, avança a velocidades vertiginosas, estonteantes. Já o mundo do Direito não aprecia velocidades, tendendo mais para o tradicional passo de ganso. Por segurança e certeza, dizem! Não é que se lhe exija uma velocidade furiosa, nem mesmo a velocidade segura e controlada da Fórmula 1, mas apenas que se abra às expectativas sociais e às alterações e conceções valorativas da vida atual, introduzidas pela sociedade científica e comercial do algoritmo e da inteligência artificial.
O Direito, ordem de convivência humana, orientada pela ideia de “ordem justa”, é parte integrante da realidade social, não uma abstração normativa saída da cabeça de iluminados.
Os factos que vêem sendo revelados a partir das intervenções (ilícitas, é verdade) dos chamados “hackers” em sistemas e ficheiros informáticos, em correios eletrónicos de grandes empresas e bancos, situados ou não em paraísos fiscais, constituindo ou podendo consubstanciar ilícitos criminais muito graves, de natureza económico-financeira, desafiam o mundo do jurídico, funcionando como que pedradas no charco do status quo conhecido, relativo à legalidade das provas. Convocam os juristas e a sociedade em geral, a reflectir sobre as regras vigentes no processo penal, em face do que é mostrado pelo “ levantar do pano”, passe a expressão.
No caso dos factos tornados conhecidos pelas atividades intrusivas de “hackers” - os chamados “leaks” - e no respeitante ao processo penal, muito haveria a dizer; para a simplicidade deste texto, distinguiria duas vertentes hipotéticas:
- - ou temos a revelação de factos criminais que podem vir a ser provados – demonstrados – pela recolha de provas, segundo as regras e no âmbito de um processo penal;
- - ou temos a revelação de factos criminais e a revelação de provas documentais que os sustentam com um carácter monopolista, isto é, não há outras provas senão as obtidas por intromissão “abusiva” na correspondência eletrónica e nos ficheiros informáticos alheios;
A primeira hipótese não suscita qualquer problema para a prossecução penal à luz do direito vigente, porque, pelas revelações do “hacker”, difundidas pelos meios de comunicação social e/ou diretamente comunicadas, o Ministério Público adquire a chamada “notícia do crime e deve iniciar uma investigação, recolhendo as provas cujas pistas são também reveladas.
Já a segunda hipótese, será mais problemática, na medida em que o processo criminal tem os seus limites nos direitos fundamentais básicos, consagrados na constituição; provas obtidas por via da violação do sigilo da correspondência e das telecomunicações e intromissão na vida privadas, são nulas ( artº 126 do código de processo penal).
Ora, será que o Direito vigente está ainda conforme o que é o sentido de justiça das sociedades atuais, considerando a factualidade que todos vimos apreendendo? Não será tempo de reflectir, analisar, reinterpretar e responder ao “Estado-Comunidade” com diferentes soluções? Neste mesmo jornal, em artigo de opinião, o professor de Direito André Lamas Leite concluiu que: “uma pura e simples inadmissibilidade do material probatório agora reconhecido não só contraria as finalidades do processo penal, mas também mina as funções básicas de um Estado de Direito democrático.”
Porque não, rever princípios no âmbito da doutrina constitucional e na jurisprudência, sem o objetivo de abastardar valores do Estado de Direito, que tanta luta custaram a consagrar, mas sim para introduzir modulações de equilíbrio nas novas realidades da vida social. Uma possibilidade, a consagração de exceções baseadas na proporcionalidade, adequação, hierarquia de valores, por forma a que a realização da Justiça acompanhe as profundas modificações valorativas da sociedade de hoje, resultantes da evolução tecnológica, económica e ambiental.
Não é isso que tem feito o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), ao decidir, como vem sendo costume, pela sobreposição do direito da proteção da liberdade de expressão, opinião e crítica política, em desfavor do direito à imagem, ao bom nome e reputação (artº 26 da Constituição), em tempos indeclinável?