A vida cada vez mais difícil dos Rohingya no maior campo de refugiados do mundo
No maior campo de refugiados do mundo vive-se um dia de cada vez, sem saber o que virá. O tempo dói a passar, arrastado pelo penoso passado que carregam e travado pelo negro futuro inexistente. Como nós, todos queriam poder sonhar ser de todo o lado, mas continuam na terra de ninguém.
Foi entre outubro e dezembro que estive como médico voluntário numa clínica no Campo de Refugiados de Kutupalong, o maior do mundo, que alberga cerca de um milhão de Rohingya. De dois meses ficam muitas histórias, confissões angustiantes sussurradas no consultório para que ninguém as ouvisse, centenas de pessoas, dos bebés de um mês às senhoras de 80 anos, episódios caricatos e tantos lugares. Mas, mais que tudo, fica uma estranha sensação de desesperança, de tristeza e de um resignado fatalismo no olhar vazio das centenas de homens e mulheres que vi, na tímida voz e no ténue sorriso esboçado com pequenas brincadeiras. “Somos um povo sem esperança”, dizia o intérprete que trabalhava comigo, “não podemos ser cidadãos do Bangladesh, a nossa casa no Myanmar ainda está a arder, somos cidadãos de lado nenhum”.
Há quase dois anos e meio vivem em Coxs Bazar, no Bangladesh, um milhão de refugiados, vindos do Myanmar. Na sequência da tentativa de genocídio pelas forças militares do Myanmar a 25 de Agosto de 2017, fugiram 750 mil Rohingya, uma minoria muçulmana num país maioritariamente budista, cujos direitos nunca foram verdadeiramente reconhecidos desde a independência do Myanmar. Para os Rohingya terem acesso à nacionalidade, de acordo com a lei de 1982, precisam de comprovar que os seus antepassados se encontravam no país antes de 1823, o que é quase impossível e não representa a maioria, que chegou ao país durante o período colonial britânico.
Os relatos e as memórias que carregam consigo são avassaladores, desde aldeias completamente destruídas a violações de grupo, crianças queimadas em fogueiras e milhares de mortos deixados pelo caminho. Com as roupas que traziam vestidas, fugiram em direção ao Bangladesh. Sem saber o que esperar, deixavam para trás uma vida inteira em busca de um novo começo, na floresta de Kutupalong, onde começaram a construir aquilo que é hoje uma autêntica cidade. Há estradas, hospitais, escolas, lojas, barbearias, cafés, centros comunitários, armazéns infindos de comida, campos de futebol improvisados, carpintarias e todos os ofícios imagináveis. As mais de 400 mil crianças que correm por todo o lado fazem do campo o maior parque infantil ao ar livre.
No maior campo de refugiados do mundo vive-se um dia de cada vez, sem saber o que virá. O tempo dói a passar, arrastado pelo penoso passado que carregam e travado pelo negro futuro inexistente. Como todos nós, todos queriam poder sonhar ser de todo o lado, mas continuam na terra de ninguém. A sul, na cordilheira montanhosa que se ergue ao nascer do sol, fica a sua casa, o Myanmar. Para norte estendem-se os infinitos arrozais do Bangladesh, onde estão mas não podem ser, onde gostavam de renascer mas continuam temporariamente numa situação cada vez mais definitiva.
Depois de dois anos no campo, a vida para os Rohingya é cada vez mais difícil. Após uma tentativa falhada de realocação destes refugiados no Myanmar e de uma manifestação pacífica no passado dia 25 de agosto, como forma de marcar o segundo aniversário do fatídico dia, o Governo do Bangladesh tem tornado a vida cada vez mais difícil para os Rohingya no campo. Se é certo que, em 2017, a generosidade inicial do governo foi extensamente elogiada pela comunidade internacional, ao acolherem quase um milhão de pessoas, hoje a falta de eventuais soluções para esta minoria começa a frustrar cada vez mais os governantes e a comunidade local.
Na sequência da manifestação pacífica, foi cortado o acesso à Internet e rede telefónica no campo. O único meio de ligação ao mundo exterior, a única forma de saberem notícias do seu país, de falarem com alguns familiares ou de poderem ver jogos de futebol, filmes ou séries, deixou de existir. Para além dos visíveis problemas deste corte para a minoria muçulmana, as ONGs não conseguem comunicar umas com as outras, o que dificulta o seu trabalho. Foram vários os casos de doentes que recusaram o internamento porque tinham filhos em casa e não tinham forma de avisá-los que teriam que ser internados ou de transferências de doentes urgentes que demoravam muito mais tempo do que o suposto.
Recentemente, o governo do Bangladesh começou a apertar o cerco a todas as ONGs que atuam no campo, que são mais de 100. A entrada dos voluntários internacionais no campo é cada vez mais difícil por uma muralha quase intransponível de regras e burocracia. Em Setembro, uma ordem governamental desaconselhou as ONGs a darem ajuda monetária aos Rohingya que para elas trabalham. Isto significaria que os milhares de refugiados que trabalham na construção civil, professores ou tradutores, deixariam de ser pagos. Este dinheiro é para muitos a única fonte de rendimento e permite-lhes ter acesso a diferentes alimentos, alguma medicação ou a transporte para determinadas zonas do campo. Como dizia Abdullah (nome fictício), “ninguém sobrevive a arroz, óleo e lentilhas”.
O ambiente no campo é cada vez mais hostil e parece estar a haver um aumento da violência sexual, especialmente contra as mulheres e crianças. É difícil de contabilizar o número de vítimas de violação e violência doméstica neste contexto, mas estima-se que 490 crianças e 12.396 mulheres tenham pedido apoio por violência sexual até ao início do ano de 2019. Seara, uma mulher de 25 anos que vi no consultório, não bebia água depois de o sol se pôr, para não ter de ir à casa de banho à noite, com medo do que lhe pudesse acontecer. E, como Seara, tantas outras mulheres que admitiam ser vítimas de violência doméstica pelos maridos mas que se recusavam a pedir ajuda.
Dois anos volvidos, ainda nenhuma tentativa de realocação foi bem-sucedida, e a frustração começa já a sentir-se na comunidade local e no governo. As reivindicações dos Rohingya para poderem voltar para casa são simples e básicas: segurança, cidadania que lhes permita acesso livre e justo à educação, saúde e serviços públicos e julgamento por genocídio das forças militares Birmanesas.
Depois de dois meses no Bangladesh, chegámos a Portugal mas o nosso coração fica sempre com os que lá estão, fica no descampado onde jogámos à bola com os miúdos, que julgavam que por ser português tinha o talento do Cristiano Ronaldo, fica na clínica e em todos os doentes que vi, fica nos sorrisos dos que por mim passavam e, percebendo que era estrangeiro, me perguntavam: “How are you? Your country?” Foi ainda a aterrar em Lisboa que recebi uma imagem que me encheu de esperança. Cerca de 50 refugiados Rohingya reuniram-se à noite em redor de um rádio, o único do campo que conseguiu captar sinal. Ouviam um representante da sua comunidade a falar no Tribunal Penal Internacional, no início do julgamento à Tentativa de Genocídio do Myanmar aos Rohingya.
No passado mês de dezembro, o tribunal abriu oficialmente um processo contra o Myanmar, instado pelo Gana em representação dos países muçulmanos. O governo birmanês, chefiado por Aung San Suu Kyi, galardoada com o Prémio Nobel da Paz, nega todas as acusações que lhe são imputadas e afirma que tudo não passa de um exagero. Na passada quinta-feira chegou o tão aguardado veredicto deste julgamento: o mais importante tribunal da ONU decretou que o Myanmar tome medidas urgentes para travar o genocídio dos cerca de 400.000 Rohingya que ainda vivem naquele país e que crie as condições para que os restantes possam regressar.
A sentença é um marco histórico e dita um início, um novo começo e uma esperança para milhões de pessoas. E ali, naquele remoto lugar do mundo, a esperança surge nas coisas mais simples, em gargalhadas, em histórias de sucesso e num rádio. Em redor do rádio, unia-se mais de um milhão de Rohingyas, unia-se o Noor, que quer ser médico, o Mohamad, que quer estudar Inglês, ou o Ahmad, que quer ter uma casa, trabalho e filhos. O rádio foi naquela noite a pequena luz ao fundo do túnel que é tão precisa, porque só assim se consegue viver ali: na inabalável crença de que a cada dia haverá um novo rádio a soar algures pronto a dar as boas novas. Naquela noite, a pequena telefonia foi um farol incandescente que lhes iluminou o futuro e revelou de novo as montanhas onde se esconde o seu país. Oxalá não se apague, nunca mais.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico