Passado e futuro na Rotunda da Boavista
Será este o modelo de desenvolvimento que queremos para as nossas cidades, e para o Porto em particular, no atual contexto das alterações climáticas? Um “progresso” assente num consumo desenfreado, sobretudo numa área já servida de várias superfícies e centros comerciais, e que estimula, ao invés de desincentivar, a circulação automóvel no centro?
Recentemente, diversos órgãos de comunicação social noticiaram o interesse do El Corte Inglés num projeto imobiliário nos terrenos da antiga estação ferroviária do Porto-Boavista, na Rotunda da Boavista, os quais a empresa espanhola tem sob reserva, em virtude de um contrato datado de 2000 com a antiga Refer, atual IP – Infraestruturas de Portugal.
O projeto foi contestado por diversos quadrantes da sociedade portuense de diferentes formas. A associação ambientalista Campo Aberto opôs-se, sugerindo a instalação de um jardim naqueles terrenos. Na câmara municipal, gerou-se consenso entre as forças partidárias ali representadas, no sentido de pedir ao governo que, considerando a “importância estratégica do terreno da antiga estação ferroviária da Boavista […], instrua a Infraestruturas de Portugal, I.P. a promover a reversão do processo de venda do terreno”. Nas passadas semanas, uma carta aberta e uma petição pediam a preservação e classificação da estação ferroviária, ameaçada pelo projeto imobiliário do El Corte Inglés.
Ao contrário do que possa aparentar, a questão não se limita a considerandos urbanísticos, jurídico-legais ou de património industrial. Permite falar da História e identidade do Porto, de noções de progresso e modernidade e, sobretudo, do modelo de cidade que pretendemos ter no futuro.
Comecemos pela História e pela estação, inaugurada no dia 2 de outubro de 1875, no mesmo dia em que se iniciava a operação do caminho de ferro do Porto à Póvoa de Varzim. A concessão, originalmente outorgada a investidores estrangeiros, fora adquirida por uma empresa que espelhava bem o espírito empreendedor da comunidade empresarial da Invicta. Laconicamente batizada de Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa de Varzim, foi formada no Porto por iniciativa dos empresários Miguel Dantas Gonçalves Pereira, Pereira Duarte e Tomás da Silva. Tinha um capital de 500 contos de réis (equivalente a cerca de 10 milhões de euros, atualmente), subscritos quase na totalidade por cidadãos portugueses, a maioria residentes no Porto. A empresa não gozou de qualquer apoio do Estado, ao contrário da generalidade das companhias ferroviárias da época, que usufruíam de subsídios à construção ou à operação – pelo contrário, contribuiu do seu próprio bolso para as obras de melhoramento da rotunda da Boavista em 1875 (segundo o Relatório & Contas deste exercício).
Este facto é particularmente relevante quando nos lembramos que a companhia ia aplicar uma tecnologia ferroviária (bitola estreita) com provas dadas no estrangeiro, mas completamente inédita em Portugal. Em todo o caso, foi nestes moldes que a empresa operou nas décadas seguintes (em 1881 estendeu a linha até Famalicão e, em 1927, em virtude da fusão com a Companhia do Caminho de Ferro de Guimarães, ficava também ligada diretamente à cidade-berço). Por estas linhas circularam materiais e pessoas para a construção do porto de Leixões, leite produzido em Vila do Conde, além de milhares de passageiros em trânsito para o trabalho ou banhistas e romeiros para a Póvoa de Varzim. A estação da Boavista serviu de estação central destes movimentos. Em suma, o edifício não só faz parte da História recente do Porto, como reflete e evoca o que era o espírito de iniciativa da comunidade empresarial portuense de finais do século XIX, quando a locomotiva a vapor era a “festa da indústria”, que prometia trazer o progresso.
Com o tempo, estas noções de progresso e modernidade assumiram feições diferentes e justificaram, por exemplo, a reconversão de parte da antiga linha da Póvoa para a atual linha B do Metro do Porto e a substituição do diesel pela eletricidade na tração. Atualmente, há quem argumente em favor do projeto do El Corte Inglés como símbolo de modernidade, sobretudo quando colocado em contraste com a antiguidade e abandono personificados na estação da Boavista e terrenos vizinhos – reservados, relembre-se, há 20 anos consecutivos ao El Corte Inglés, o que tem dificultado qualquer outra solução para os aproveitar.
Mas será este o modelo de desenvolvimento que queremos para as nossas cidades, e para o Porto em particular, no atual contexto das alterações climáticas? Um “progresso” assente num consumo desenfreado, sobretudo numa área já servida de várias superfícies e centros comerciais, e que estimula, ao invés de desincentivar, a circulação automóvel no centro? Ou deveremos buscar um modelo mais consentâneo com os desafios do nosso tempo, que promova um consumo mais responsável, retire carros dos centros urbanos, promova espaços verdes e ao mesmo tempo responda a problemas efetivos das nossas cidades?
Lisboa, por exemplo, prepara-se para “reduzir a circulação automóvel ao mínimo indispensável” na Avenida da Liberdade, Baixa e Chiado, ao mesmo tempo que dá início à construção de um novo espaço verde de cinco hectares na Praça de Espanha, parte de um ambicioso plano de, até 2021, ter “mais 347 hectares de área verde do que em 2008” e colocar “85% da população […] a menos de 300 metros de um espaço verde com pelo menos 2000 metros quadrados”. Já no Porto discute-se a implementação de mais um centro comercial no coração da cidade.
Sem embargo de outras soluções urbanísticas poderem ser implementadas nos terrenos (uma zona habitacional de baixa altura, que respondesse ao problema da habitação no Porto, por exemplo), a conservação e reutilização em novas funções da estação ferroviária da Boavista deve fazer parte dessas soluções. Preservaria parte da História do Porto, homenageando ainda todos aqueles que em tempos contribuíram para dotar a cidade de uma infraestrutura crucial para o seu desenvolvimento. Além do mais, considerando que se prevê que a nova linha G do Metro do Porto passe por baixo dos terrenos, a estação poderia retomar as suas funções ferroviárias originais, transformando-se num ponto de acesso à nova linha. Que melhor homenagem se poderia fazer a uma velha e abandonada estação?
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico