De 21 de janeiro de 2019 a 21 de janeiro de 2020: Um salve aos Manifestantes Antirracistas!
Num artigo publicado em 2007 na revista francesa Lusotopie, o sociólogo João Filipe Marques propõe que o mito fundador do “não-racismo dos portugueses”, capitalizado pelo Estado Novo na tentativa de justificar a “situação inequivocamente racista” que foi a colonização dos territórios africanos, terá condicionado a realidade social e cultural contemporânea. Pergunta-se também se o processo de invizibilização do racismo colonial não terá funcionado como uma “vacina”, que teria protegido os portugueses das manifestações de “racismo diferencialista” e “a passagem do racismo para o terreno do político”. Por outras palavras, o investigador questiona até que ponto aquilo a que eu denomino de consenso lusotropical não assentará num equilíbrio frágil, baseado na capacidade de o mito se perpetuar apesar da desmontagem crítica de que vem sendo alvo, pelo menos desde os anos 60 do século passado.
Neste meu artigo, que celebra o primeiro aniversário da manifestação espontânea de afrodescendentes que ocupou avenidas e praças centrais de Lisboa, em 19 de janeiro de 2019 — e que foi alvo de forte repressão policial e de uma cobertura jornalística que, salvo algumas honrosas excepções, alinhou com a polícia na criminalização do ato cívico — proponho que João Filipe Marques estava correto em atribuir um papel imunitário ao discurso mitológico lusotropical. Não tendo nunca impedido as manifestações de racismo a nível das relações interpessoais, ou sequer de racismo estrutural e institucional (estão documentados os casos de racismo na procura de habitação, no sistema de ensino e nas relações com as forças de segurança), a ideia de que os portugueses são incapazes de racismo contribuiu para adiar o problema que em outros países europeus há mais tempo se verifica, a formação de forças políticas que abertamente advogam a discriminação, a perseguição e a alienação política de grupos minoritários na sociedade. Proponho também que esse consenso se esgotou, e que o último ano oferece uma multiplicidade de exemplos e sintomas desse esgotamento, agora que já há pelo menos uma força política que abertamente persegue os móbiles referidos. Não significa que o mito fundador, nas suas diversas articulações, não continue a manifestar-se todos os dias na sociedade portuguesa, ou que não tenha resiliência suficiente para garantir ainda várias sobrevidas. O que quero dizer é que a rejeição da sua consensualidade, inicialmente limitada aos líderes históricos dos movimentos de independência africana, ou a académicos portugueses e estrangeiros, é hoje impossível de ocultar ou silenciar.
O que mudou? Por razões que é impossível desenvolver aqui, há novos atores sociais que adquiriram visibilidade e agência política, e que não vão voluntariamente regressar ao silêncio de décadas a que foram votados. Como sabemos, têm sido insistentemente responsabilizados por trazerem o racismo à praça pública, como se não fosse a rejeição do racismo a trazê-los. Pressupõe-se nos ativistas antirracistas a imbecilidade de alterarem a paz pública (e, desde logo, a sua própria paz) quando tudo está bem para todos. Ora, o que acontece é que a maior visibilidade que estes sujeitos políticos conquistaram permite aos atores políticos de sempre posicionarem-se sobre estas questões. O ano que agora terminou oferece abundante material para um estudo de caso sobre as tendências desses posicionamentos que nos mostram que tudo está muito longe de estar bem.
1. Desde janeiro do ano passado, o ativista antirracista Mamadou Ba tem sido alvo de constantes ameaças de violência física contra a sua pessoa e família. Num país que foi o primeiro no mundo ocidental a abolir a pena de morte, as ameaças à sua integridade física e moral deveriam constituir um sério aviso sobre o que está em jogo na luta antirracista: a conquista da cidadania plena por parte de quem o nosso país tradicionalmente exclui do corpo da nação, mas também a defesa incondicional das instituições democráticas e do necessário aprofundamento da experiência democrática. Quem contemporiza, direta ou indiretamente, com o discurso que culpabiliza as vítimas do racismo pela violência que sofrem, constitui-se cúmplice de quem ameaça a coberto do anonimato. O facto de que muitas destas ameaças provêm de membros das forças de segurança apenas agudiza a gravidade do problema e demonstra a profunda razão de ser do antirracismo.
2. Em outubro de 2019 três deputadas negras foram eleitas para representar três diferentes partidos no Parlamento. Esta eleição representa uma inegável conquista, sobretudo porque duas delas se elegeram numa plataforma declaradamente antirracista, mas constituiu também um estímulo para a expressão desbragada do racismo que sempre existiu e que até há pouco se confinava à esfera particular. Joacine Katar Moreira, deputada eleita pelo Livre, tem sido desde a campanha eleitoral o alvo favorito, mas não exclusivo, de ataques que visam eliminar a legitimidade de representante adquirida no ato eleitoral, e a sua legitimidade de sujeito político tout court. Esses ataques repetem-se periodicamente por parte de diretores de jornais e colunistas, cabeças falantes e figuras públicas da extrema-direita à esquerda, tendo como alvo não a qualidade do trabalho parlamentar, que raramente merece escrutínio independente, mas sim “a pose” da deputada, “a sobranceria” da deputada, e que sobranceiramente prescrevem “humildade”. No dia em que escrevo, o jornal Expresso publica um “artigo” de alguém que se identifica como jornalista, e que se atreve a comparar Joacine Katar Moreira a Isabel dos Santos, no calor da publicação dos “Luanda Papers”. Trata-se de uma transparente tentativa de incutir no público a ideia subliminar de que a coincidência temporal de dois casos de imprensa pressupõe a igualdade de condição entre duas mulheres negras: associar JKM à cleptocracia de estado em Angola é um golpe ignóbil que mostra até que ponto o impoder nesta democracia pode ser representado como poder ameaçador para os donos da imprensa em Portugal. Pouco importa que estas prescrições sejam emitidas por quem não votou nem nunca concebeu votar na deputada, ou no partido que ela ainda representa. Digo ainda, porque, no momento em que escrevo, a sua permanência como DURP do Livre está tudo menos assegurada, tendo o próprio partido permitido que a comunicação social transformasse as desavenças e desorganização interna num ato de disciplinamento público de Joacine Katar Moreira. Por desenho ou por inércia, está-se a conseguir minar a reputação pessoal e política de alguém que sempre disse alto e bom som — e por isso! — àquilo que vinha, e, ao incidir os holofotes exclusivamente na sua pessoa, a garantir-se que o trabalho das outras deputadas (e, já agora, dos restantes 229 deputados da nação) não receba a atenção necessária e merecida.
3. No final de dezembro, um jovem estudante cabo-verdiano foi brutalmente espancado à saída de um bar em Bragança, tendo acabado por falecer em consequência dos ferimentos recebidos. Estamos ainda longe de perceber exatamente as razões da demora no noticiamento do ocorrido, mas não deixa de ser peculiar que as primeiras informações tenham surgido num jornal português publicado no Luxemburgo. A comunidade afrodescendente desde logo repudiou o ato de violência e, habituada à parcialidade da Justiça, mobilizou-se para fazer público esse repúdio. Essa mobilização, que se traduziu na realização de vigílias em várias cidades do país e do estrangeiro, foi coberta de forma seletiva pela comunicação social. Quem sintonizou as televisões para a vigília no Terreiro do Paço, em Lisboa, nunca terá vindo a saber que a mesma se transformou numa marcha antirracista que reproduziu o itinerário da marcha que, em janeiro de 2019, foi fortemente reprimida com balas de borracha, cassetetes e até prisões. A ninguém ocorreu a possibilidade dessa marcha, que desta vez incluiu idosos e crianças, assinalar o aniversário ao qual eu associo a publicação deste artigo, e constituir uma reiteração em uníssono da vontade política que tem trazido os afrodescendentes para a esfera pública em Portugal. E, porque a discussão sobre a dimensão racista do caso Giovani desde o início foi desqualificada por via da referência às presumíveis motivações do crime, necessariamente difíceis de estabelecer nas circunstâncias em que ocorreu, mas impossíveis de se excluir de consideração, devido às mesmas circunstâncias, o foco incidido sobre estes atos cívicos acabou por limitar a visibilidade e o alcance da sua mensagem. Acontece que a instrumentalização deste caso pela extrema-direita, que colocou em circulação narrativas que atribuíam a responsabilidade do crime a pessoas ciganas, com evidente propósito divisionista, acabou por iluminar o racismo latente no caso. Segundo reportou o DN, Carlos Anjos, presidente da Comissão de Proteção de Vítimas de Crimes, e ex-inspetor da PJ, contribuiu para difundir estas narrativas conspiratórias numa sua participação num programa da manhã do canal CMTV. Por outro lado, ao procurar desvalorizar as alegações de racismo feitas sobre este caso, o diretor nacional da PJ Luís Neves afirmou que “não se trata de um crime entre nacionais de um país ou de outro, entre raças. Não se trata nada disso”, mostrando assim confundir os conceitos de racismo e de xenofobia. Acrescentou ainda que “o país é um território de grande irmandade, neste caso, com o povo de Cabo Verde”, introduzindo deste modo uma variável ideológica no que não deveria ter sido mais do que uma declaração técnica. Este deslize é por demais ilustrativo do que venho dizendo: no seu afã de tranquilizar a população, o diretor não só procura reiterar o mito fundador de que não há racismo em Portugal, como o faz desqualificando a possibilidade de que tenha de facto havido racismo neste crime específico antes da investigação estar concluída, e recorrendo a um elemento de validade intangível: a “irmandade” que nunca deveria constar de um relatório técnico.
São estes apenas três sintomas agudos daquilo a que denomino de fim do consenso lusotropical. Não é porque há racismo estrutural na sociedade portuguesa que os portugueses são todos uns facínoras a necessitar de autoflagelação. Mas, sendo repetidamente alertados para a existência de racismo por parte de quem o sofre todos os dias, ou sendo repetidamente confrontados com os seus efeitos perversos, como seja a entrada de um partido que abertamente defende uma plataforma racista, xenófoba e fascista no Parlamento, os portugueses têm perante si a opção de escutar os alertas e estabelecer laços de solidariedade que reforcem as instituições democráticas, reforço este que beneficiará todos os portugueses; ou de, por inércia ou desenho, alinharem com quem está apostado em minar a democracia. Não há meio-termo. A democracia chegou a Portugal a 25 de Abril de 1974 com o contributo dos movimentos de libertação africana. Hoje, 46 anos volvidos, são os descendentes desses movimentos que, uma vez mais, estão na vanguarda da preservação da democracia. É com eles que a sociedade portuguesa merecerá o futuro que souber construir, sendo que não há futuro sem eles.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico