Natal laico?
Por mais que as gerações mais novas se possam espantar, o Natal não se celebra para andar nas rodas gigantes de feiras populares pífias, nem para aumentar desmedidamente as vendas numa orgia consumista.
A Associação Cívica República e Laicidade (ACRL) manifestou-se este ano, como julgo o faz sempre, contra a emissão pela televisão pública da mensagem natalícia do cardeal patriarca de Lisboa.
Acho surpreendente que, numa democracia aberta, liberal, sensata como a nossa ainda surjam expressões de intolerância e facciosismo deste tipo, envolvidas num jacobinismo serôdio, quase divertido pela sua excentricidade na sociedade contemporânea.
Esta intervenção parece-me além do mais totalmente incongruente e um bocadinho irritante. Por mais que as gerações mais novas se possam espantar, o Natal não se celebra para andar nas rodas gigantes de feiras populares pífias, nem para aumentar desmedidamente as vendas numa orgia consumista, nem sequer, por antiga que seja já essa tradição, para uns senhores barrigudos se vestirem de Pai Natal e porem umas barbas brancas, nem ainda para enfeitar casa e praças com árvores carregadas de bolinhas.
Não. O Natal celebra o nascimento, há mais de 2000 anos, de uma criança chamada Jesus Cristo que criou e deu o nome ao cristianismo. Celebra-se, pois, o nascimento de uma religião. É portanto uma festa religiosa, celebrada na maioria dos países do mundo, incluindo onde essa confissão não é maioritária.
Se há país onde me parece que a separação da Igreja e do Estado não esteja ameaçada é o nosso. Ora mais de 70% dos portugueses consideram-se cristãos, a maioria católicos, e a maior parte dos outros têm, como todos os europeus, uma cultura de raiz cristã, bem como uma memória grata dos natais de infância com pais e avós, experiência que querem transmitir aos filhos, até porque inerente à nossa identidade e que está presente em diversas expressões da nossa cultura.
Por isso, julgo ser do mais elementar bom senso e bom gosto que o Estado, sem fanatismos, disponibilize os meios de comunicação social públicos para que, nessa data, o chefe da Igreja Católica portuguesa se possa dirigir aos católicos e a outros que vivam o espírito natalício. Como será até se chefes de outras religiões minoritárias o pedirem em ocasiões para elas relevantes.
Para ser congruente, parece-me que a ACRL deveria então insurgir-se contra a celebração da própria festa religiosa, o que implicaria convencer os comerciantes a abdicar da melhor época de vendas do ano, que as crianças não escrevessem ao Pai Natal e dispensassem os presentes e as iluminações que tanta alegria lhes dão e os adultos fossem trabalhar no dia 25 de Dezembro. Não sei se teria muita popularidade. Mas, se a ACRL aceita a festa, é um bocado irrisório queixar-se da transmissão da mensagem do cardeal patriarca. Que só ouve quem quiser. É a liberdade.