Bateram no meu médico!
O muito que funciona no SNS (ou nas escolas) é devido ao brio e à responsabilidade dos seus profissionais. Onde há desleixo e abandono é nos que os tutelam.
Não podemos desculpar a violência sobre os médicos. Essa violência é sempre grave e merecedora de todo o repúdio. No serviço público é, além do mais, um ataque a todos os Portugueses que sustentam com impostos o SNS. Idem com os professores. Costumo lembrar aos alunos que ter más notas numa escola privada é estúpido, mas na escola pública é uma desconsideração para com todos os que trabalham e a sustentam.
O mesmo se passa com o SNS. É nosso, está mal, precisa de ser acarinhado e não esmurrado. Por isso não podemos isolar este caso da responsabilidade da tutela. Esta é uma questão pública – a degradação do SNS e a violência contra profissionais de saúde. São centenas de queixas de profissionais de saúde por ano, seria estranho até numa esquadra de polícia! Como é possível este grau de violência num hospital, lugar por excelência de cuidado e dádiva?
O Conselho de Administração (CA) do Hospital de Setúbal teve uma explicação, e a explicação é que para o CA é normal. Algo como “quem anda à chuva molha-se”, a violência faz parte do contexto de risco. Não é apenas surpreendente que um CA se atreva a dizê-lo, e se mantenha em funções, como se acobarde em assumir a responsabilidade primeira pelo que aconteceu, olhando para dentro, para o funcionamento do hospital por que é responsável: o tempo de espera nas urgências, o número de profissionais em exercício, o número de atos médicos, quantos enfermeiros, o índice de burnout dos seus profissionais, a taxa de abandono do seu hospital pelos profissionais de saúde (torne-a pública, desafio). Tudo isto tem responsáveis: o CA, a ministra, o Governo... Digamos que o soco atingiu não quem se “submete a um risco normal”, mas a última pessoa que o devia levar, o profissional de saúde.
Vejamos. Esta é uma história real de um hospital pediátrico de referência em Lisboa, no inverno de 2019. Uma médica especialista está a atender doentes, alguns muito graves, e uma mãe está há hora e meia à espera. A mãe entra no gabinete gritando impropérios, insultos à médica, grita pelos corredores: “Então e minha filha?!” O pai pede desculpa, diz que “ela não anda bem”. A mãe sai e volta ao gabinete, ameaça bater na médica, vem o segurança. Voltemos à mãe, nervosa, mal-educada ou descontrolada, doente, não sabemos. Também não sabemos se naquela tarde perdeu parte do salário, ou até o emprego por se ausentar do trabalho. Quantas vezes foi ao médico com a filha este ano? Pode ser também só rude e ter um emprego maravilhoso – o que é cada vez mais incomum, visto que o SNS cada vez mais é o espaço das classes sociais mais pobres, e das doenças graves, que o setor privado não paga, mesmo com seguros. (Faço aqui um parêntese para lembrar que os erros do setor privado quase nunca são retratados nos media, e que eu pessoalmente uso o SNS e tenho médico de família, não aderi à “histeria” contra o SNS. Outro para sublinhar que as “classes sociais mais pobres”, que vivem recebendo e pagando contas, correspondem de facto a 70% a 80% da população trabalhadora portuguesa. Ou seja, nunca haverá em Portugal mercado para um setor privado de saúde sem a canalização de verbas públicas para ele que deviam ser destinadas ao SNS. Não há ricos que cheguem).
O que fez a médica no dia em que foi agredida verbalmente? Tal como grande parte no SNS hoje, por falta de contratações, autorizou que mercassem vários doentes à mesma hora – leram bem, à mesma hora. Três consultas às 9h, duas às 9h20, duas às 9h40. Os doentes com cancro e transplantados foram vistos primeiro, e aquela consulta, não urgente mas necessária, foi colocada para o fim – daí a hora e meia de espera. Naquele dia, já a meio da tarde, a médica ainda não tinha sequer almoçado.
É de histórias como esta que se nutre a violência “normal” para o CA de Setúbal: da desorganização do trabalho que, para abrir mercado ao setor privado, impôs o racionamento no SNS. Ou há carreiras atrativas com exclusividade no SNS ou a situação vai deteriorar-se mais: urgências apinhadas, consultas sobrelotadas, carreiras suspensas, burnout, desrealização, despersonalização, sofrimento ético – no limite suicídio, elevado entre os médicos, sistematicamente colocados com a vida dos outros na mão e com cada vez menos recursos, incluindo o tempo para si mesmos e para a relação médico-doente A médica maltratada falou entretanto com o diretor e informou-o, “com muita tristeza, que depois daquela situação não ia mais marcar doentes sobrepostos” e cancelou as consultas a vários... Que talvez apareçam um dia destes nas urgências, aos murros.
Ela saiu mais desmoralizada deste processo porque o sentido do seu trabalho, que é constitutivo da nossa subjetividade, é atender as pessoas que precisam, inclusive a menina não urgente da mãe agressiva.
Nada disto é normal. Esta escassez era e foi prevista por todos aqueles que estudam o SNS. Há quatro anos publicámos um estudo, que coordenei na UNL, onde previmos quais seriam as saídas do SNS a nível médico e a escassez de recursos. No mesmo ano vários médicos alertaram para o facto. Portugal é assim, pode-se governar fingindo que não se sabe de nada.
Não temos dúvida, na equipa que estuda as condições de trabalho, de que a violência contra os médicos (e professores) tem ainda outra raiz: a ausência de reconhecimento público pelo trabalho destes profissionais, que mina as relações de confiança entre médicos, entre médicos e administrações e entre médicos e a população. Explico-me: nós somos algo porque nos reconhecemos no outro, um bom ortopedista é reconhecido pelo seu par, outro ortopedista. A avaliação de desempenho, o SIADAP (Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública), mina este reconhecimento. Mas há outro reconhecimento, o político, ainda mais importante: quem os devia defender é quem os ataca, pagando-lhes mal, degradando o seu estatuto profissional, mandando-os emigrar, comentando o erro (excecional) e nunca o esforço hercúleo – e diário. Para salvar a banca privada e outros negócios – para a qual nunca houve uma auditoria pública –, os governos transformaram as dividas privadas aos bancos em dívida pública, e encetaram uma campanha negra para responsabilizar os funcionários públicos por todos os males que o País tinha: são uns malandros, prevaricadores, só cometem erros, professores com falsas baixas, enfermeiros a “matar gente” com greves por salários justos, enfim, gente a viver “acima das possibilidades”... Porém, foram estes funcionários públicos, entre outros trabalhadores, que com os seus impostos salvaram os negócios privados dos banqueiros...
Esta falta de reconhecimento social pelo trabalho destes profissionais, encorajada pelo desrespeito de quem os tutela pelos seus trabalhadores, abriu espaço ao desrespeito público por este profissionais. Parte da explicação para o aumento da violência contra eles reside certamente aqui.
A realidade, dizemo-lo apoiados nos dados de burnout e absentismo que estudámos, mostra-nos um retrato inverso da percepção pública que tem sido instigada em relação a estes profissionais: há muito mais médicos e professores a trabalhar mental e fisicamente adoecidos, a fazer um esforço extra debatendo-se com uma constante falta de condições para exercerem corretamente o seu trabalho, do que profissionais prevaricadores. Sobre isto, porém, há poucas notícias.
Conclusão: o muito que funciona no SNS (ou nas escolas) é devido ao brio e à responsabilidade dos seus profissionais. Onde há desleixo e abandono é nos que os tutelam.
Historiadora, coordenadora do livro História do Serviço Nacional de Saúde em Portugal, Âncora
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico