Malabarismos com as rendas

Que uma pessoa tenha poucos rendimentos pode ser um problema do indivíduo, mas que os rendimentos de uma pessoa a impeçam de viver com dignidade é sempre um problema da sociedade.

No Algarve e nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, baixar as rendas de mercado em 20% não serve para que os residentes destes municípios invistam menos do que 35% do seu rendimento no arrendamento da casa. Baixar as rendas de mercado em 20% fora do Algarve e das áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa serve para que os residentes nestes territórios consigam que as despesas com a renda sejam inferiores a 35% do seu ordenado. Os agregados fiscais que protagonizam a primeira frase representam 50% de Portugal Continental. Os agregados fiscais que protagonizam a segunda frase representam 50% de Portugal Continental. E pronto, a partir daqui, o debate é quase uma guerra civil.

Convém clarificar que estamos a ter este debate por causa do Programa de Arrendamento Acessível (PAA) e, também, que só por causa do PAA é possível que estejamos a ter este debate. Explico melhor: antes não era possível medir o desfasamento real entre renda e rendimentos porque o INE só publicava parte dos dados necessários (o IRS dos agregados fiscais, à escala do município). Agora é possível fazê-lo porque o PAA, desde 2017, manda publicar semestralmente os dados que faltavam (os valores medianos dos novos contratos de arrendamento à escala do município e, quando possível, da freguesia). O resultado é duplo. Tornar os dados públicos torna público o problema. E o que vemos não nos agrada.

Explicado isto, importa esclarecer exactamente o que não nos agrada. A proposta da Secretaria de Estado de Habitação para resolver o desfasamento, já mensurável, entre o que ganhamos no ordenado e o que gastamos na casa (ou nos transportes ou na saúde, como consequências indirectas e ainda não suficientemente medidas) é uma caixa de ferramentas denominada Nova Geração de Políticas de Habitação, lançada em finais de 2017. O problema é que grande parte dos programas ainda não está disponível, e aqueles que existem (e que permitiriam financiar habitação a custos controlados) estão a ser morosamente articulados com os municípios. Do pouco que resta, temos o PAA, que, sem reforços do público, fica a gerir apenas o privado.

Assim, é mais fácil perceber que, para utilizar melhor o justificadíssimo descontentamento, temos de dar um pouco de contexto e de gerir as expectativas. Contexto porque, sem investimento público, temos apenas perda de receita, com o Governo isentando no IRS o que o senhorio baixa na renda, (ou seja, 20%). Expectativas porque é isso, e não mais, o que se pode pedir ao PAA. Resolver o problema da habitação exige trazer a jogo muitos mais proprietários do que aqueles que estão disponíveis para arrendar por menos (aceitando um benefício fiscal para receber o mesmo). Precisamos é de chegar àqueles que, não tendo liquidez, nem reabilitam o seu património nem o arrendam: vendem-no no mercado e, ao fazê-lo, contribuem para engordar os valores dos contratos a cada semestre.

Ou seja, o PAA é realista, mas não é pragmático. Para que o seja, precisamos de fazer três coisas. Primeiro, implementá-lo onde funciona (nos territórios com pressão urbanística moderada e onde for articulado com os financiamentos que viabilizam reabilitar e arrendar a custo justo). Segundo, acertar com os termos (porque, hoje, definir o “acessível” em função do mercado, e não dos rendimentos, é algo extremamente corrosivo). Que uma pessoa tenha poucos rendimentos pode ser um problema do indivíduo, mas que os rendimentos de uma pessoa a impeçam de viver com dignidade é sempre um problema da sociedade. Terceiro, assumir que a habitação nos dói porque o poder público abandonou inquilinos e proprietários e facilitou que este espaço fosse colmatado por quem a usa para se lucrar no mercado.

É neste último ponto que temos mesmo de ir à guerra. Mas enviando toda a política, e não apenas um programa.

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