“Se não temos paz interior, dificilmente podemos construir paz social”
Pablo D’Ors é padre, escritor e consultor do Conselho Pontifício da Cultura por nomeação do Papa Francisco. O espanhol esteve em Portugal para apresentar O Amigo do Deserto, publicado em 2005, mas que só agora chegou a Portugal, pela mão da Quetzal. Pelo caminho, deu a conhecer a associação que criou e onde o silêncio impera.
Esteve em Lisboa para apresentar o romance O Amigo do Deserto, que escreveu há 14 anos, mas que só agora chega a Portugal, através da Quetzal. Por cá, A Biografia do Silêncio — que em Espanha foi um bestseller e vendeu mais de 150 mil exemplares — e Sendino Está a Morrer foram publicados pela Paulinas Editora.
Pablo D’Ors estudou nos EUA e na Alemanha, onde foi discípulo do monge beneditino e teólogo alemão Elmar Salmann (1948-). Foi ordenado sacerdote em 1991 e esteve em missão nas Honduras, assim como na Europa de Leste. Apologista do silêncio e da meditação, tem como mestres o eremita francês Charles de Foucauld (1858-1916), que refere no seu livro, onde o protagonista sente uma atracção pelo deserto, viajando até ao Sara, reencontrando-se por lá; o escritor e monge trapista francês Thomas Merton (1915-1968) e o jesuíta húngaro Franz Jalics (1927-), autor de livros sobre contemplação e espiritualidade.
Anos depois de ter escrito O Amigo do Deserto, em 2014, criou a associação Amigos do Deserto, que tem como objectivo a meditação. Não é preciso ser consagrado ou católico para fazer parte desta rede — que em Espanha reúne cerca de meio milhar de pessoas —, mas sim estar interessado na experiência interior que é o silêncio. Embora não acredite que o Papa conheça a sua experiência, tem a convicção de que o silêncio pode mudar o mundo. A conversa com o PÚBLICO aconteceu no final de Outubro, em Lisboa, mas parte da gravação perdeu-se, o que obrigou a que outra parte fosse feita por escrito, quando o autor se preparava para viajar para o México.
Sacerdote, escritor, fundador da associação Amigos do Deserto. Quem é Pablo D’Ors?
Gostaria de ser um homem do deserto e um homem da amizade.
Porquê?
Quando falo de deserto, falo de interioridade. E quando refiro a amizade, falo de comunhão, capacidade de sentir os outros mais próximos. Houve um tempo que me identificava muito com o arquétipo do sacerdote e do escritor, que são muito distintos, mas que têm afinidades: a experiência estética e a estática; a poética e a mística; todas estão profundamente ligadas. Mas hoje poderia não ser escritor nem sacerdote e a minha essência permaneceria intacta.
O que significa?
Quero dizer que escrever e ser pastor da Igreja não deixam de ser expressões, mas o essencial é a experiência vital. Por isso, eu quero ser um homem do deserto e um homem da amizade.
Porquê este livro com o mesmo nome que a associação?
Não escrevemos o que vivemos, mas o que vamos viver. Com isto quero dizer que a literatura não é tanto uma memória, mas uma profecia. Quando escrevi este livro [em 2005], não sabia que ia fundar uma associação [em 2014], nem que me ia dedicar de maneira tão completa à meditação. De algum modo, este livro foi como um presságio do que viria a acontecer mais tarde. Por exemplo, no livro escrevo sobre a dificuldade em entrar para a associação e, na vida real, houve muitas pessoas que quiseram entrar [nos Amigos do Deserto] e não conseguiram porque houve uma explosão e não era possível dar resposta a toda a gente. Nessa altura, percebi que havia muita gente interessada no silêncio. Foi uma feliz casualidade, que é mais do que isso, é uma feliz causalidade. Quando os livros nascem de dentro, têm mesmo de nascer, porque há uma grande confluência entre a literatura e a vida.
É autobiográfico?
Digo sempre que é autofictício, quer dizer que há a novela épica do indivíduo, em que o protagonista não sou eu, mas ele e todas as personagens secundárias são o alter ego do escritor. Este trabalha com a memória, com a imaginação. Recordamos o que vivemos, vimos, pensámos, sentimos; e recriamos, enfabulamos... Há um lado autofictício, pois o protagonista chama-se Pavel e eu sou Pablo. Mas isso acontece com todos os meus livros, pondo-me na pele de uma mulher ou de uma pessoa muito diferente de mim. [O escritor] Milan Kundera, que admiro e leio sempre, diz que a novela é uma exploração da identidade com egos imaginários.
O que é a associação Amigos do Deserto e como funciona?
É uma rede aberta de meditadores, isto é, de pessoas interessadas na experiência interior do silêncio, que é comummente conhecida como meditação. Para fazer parte da rede, é preciso fazer um retiro de iniciação: um fim-de-semana intensivo em que o método ou a maneira de meditar é ensinado. Essencialmente, consiste num trabalho corporal de relaxamento, um trabalho mental de concentração e espiritual de contemplação. Aqueles que desejam continuar são integrados nos nossos grupos de prática semanal, a que chamamos “seminários silenciosos”. Estamos convencidos de que, neste mundo barulhento, esse exercício de encontro consigo mesmo é enormemente transformador.
Depois de O Amigo do Deserto, escreveu A Biografia do Silêncio, que é um ensaio sobre meditação, a associação é uma consequência desses dois livros?
A associação foi criada porque muitos leitores de A Biografia do Silêncio queriam pôr em prática os ensinamentos desse pequeno livro. Nesse — que foi um verdadeiro milagre editorial, com mais de 150 mil leitores desde a sua publicação em 2012 —, conto a minha experiência, as dificuldades em ficar em silêncio e quietude, as minhas descobertas diárias, os benefícios que me trouxeram... Pouco a pouco, depois de uma década e meia de perseverança, cheguei à conclusão de que poucas coisas ajudam tanto a conhecermo-nos a nós mesmos como nos sentarmos em silêncio para ouvir e ver o que somos.
A meditação católica é diferente da budista?
As formas são diferentes em todas as tradições religiosas, mas o pano de fundo é o mesmo. Normalmente, ilustro essa pergunta com o que chamo “metáfora da montanha”. Cada religião sobe ao topo da montanha por uma encosta. E as encostas são diferentes umas das outras: uma tem neve, outra é árida, outra tem vegetação exuberante; mas, lá em cima, onde o ar é mais puro, todos conhecemos todos. E isso é evidente pela enorme afinidade que existe entre os diferentes textos místicos de todas as tradições da sabedoria. As palavras podem aspirar, no máximo, a gerar afinidade intelectual ou sentimental. O silêncio, por outro lado, dá-nos algo ainda mais bonito e profundo: a comunhão espiritual.
O silêncio alcança-se através da oração e da palavra?
Silêncio e palavra são os dois lados da mesma moeda, o que significa que não são realidades opostas, mas precisamente complementares. Há silêncio para ouvir a palavra, e a palavra verdadeira sempre se abre para um silêncio maior.
Não podemos ir para o que somos sem o que somos: não é possível entrar no nosso silêncio interior sem palavras, pois somos palavra. Em muitas tradições meditativas, e, é claro, na cristã, a palavra usada na meditação é conhecida como jaculatório [uma oração curta] ou mantra, que ajuda ao recolhimento. Normalmente, no nosso interior, reina uma grande confusão, mas uma única palavra é suficiente para nos curar, para nos purificar de tanta conversa e barulho mental. A meditação de que falo é a que no cristianismo é conhecida como uma “oração do coração”.
Os Amigos do Deserto são sucessores dos grandes místicos espanhóis como Teresa de Ávila e João da Cruz?
Não propriamente. Sentimo-nos herdeiros, ainda que modestamente, das hesicastas. O hesicasmo era uma corrente espiritual da Igreja Ortodoxa que, entre os séculos V a IX, praticou a oração da quietude para alcançar a paz interior e a presença de Deus.
A meditação pode mudar o mundo?
Não vejo uma maneira melhor. Ninguém pode dar o que não tem. Se não temos paz interior, dificilmente podemos construir paz social ou externa. Mudar o mundo é um objectivo muito ambicioso. Se realmente nos mudássemos, perceberíamos o enorme poder que isso também significa socialmente. De que outra forma explicar que um homem envolto em panos, chamado Gandhi, foi capaz de expulsar o império britânico de seu país, sozinho?
Como pode um escritor, um homem da palavra, ser apologista do silêncio?
Porque a palavra não existiria sem o silêncio que a precede, a segue e a sustenta. Porque o silêncio não é simplesmente ausência de barulho, mas de ego. Porque se lê em silêncio e o silêncio é necessário para se poder falar e ser escutado.
Nunca imaginei que me iria converter, através da palavra, num apologista do silêncio. É um destino infinitamente mais belo do que eu alguma vez poderia ter imaginado. Foi o próprio silêncio que me conduziu a esta missão. E dou graças por ter sabido recebê-la e por estar entregue a ela.