A nova confusiologia orçamental para a Cultura
Para além da espuma dos dias, existe a necessidade concreta de se repensarem os modelos de financiamento dos apoios à artes após a entrada em vigor da designada descentralização cultural.
De cada vez que se ouve falar o primeiro-ministro ou a ministra da Cultura acerca do Programa Orçamental da Cultura (POC) para o horizonte dos próximos 4 anos da legislatura, ouvem-se coisas diferentes e antagónicas. Porém, na base de todas as intervenções no espaço público está o compromisso, inscrito no programa eleitoral do Partido Socialista, bem como no programa de Governo, de aumentar até 2% o orçamento da cultura.
No fundo, o que importa ao sector cultural e criativo é perceber se o governo pretende efectivamente afectar uma fatia maior do Orçamento de Estado (OE), isto é, saber se a propalada intenção de aumentar para 2% o orçamento para a cultura representa um crescimento das receitas gerais do OE afectas ao orçamento da Cultura?
Até ao OE para 2019 o POC dividia-se em dois grandes grupos de receitas, a receita geral (directamente financiada pelas receitas do OE, no total de 133,2 milhões em 2019) e a receita consolidada, que representa o somatório global de receitas gerais com fontes de receita dos organismos públicos de cultura (bilheteiras), prestações de serviços, fundos comunitários, receitas consignadas (taxas afectas ao ICA), transferências entre Administração Pública e outras (com o valor de 249,9 milhões em 2019). Em 2019, pode observar-se que a receita de outras fontes de financiamento, que não receita geral, equivaleu a 46 % da receita global (consolidada).
Até aqui nada nos leva a crer que o próximo POC seja diferente. No entanto há uma nova miragem no horizonte, pois é inédito um governo cavalgar a onda das reivindicações do “1% para a Cultura”, revelando nesse movimento uma certa esperteza usada para exercitar a sua já habitual numerologia orçamental.
Saber concretamente de onde vem a receita para atingir a promessa de atingir os 2% é importante para podermos entender de forma clara o compromisso do novo governo PS com a cultura. Porém, esta não tem sido uma tarefa facilitada dado que os discursos dos governantes variam conforme os dias e geram mais confusão do que esclarecimento, senão vejamos:
1. No programa eleitoral do PS pode ler-se: “Aumentar, de forma progressiva, a despesa do Estado em Cultura, com o objetivo de, no horizonte da legislatura, atingir 2% da despesa discricionária prevista no Orçamento do Estado» (sublinhado nosso). Neste contexto, pergunta-se, qual o significado de “despesa discricionária”? Uma das hipóteses é, parece-nos, o mesmo que dizer que se pretende aumentar a dotação directa do Estado (despesas de investimento) para além do compromisso com as despesas obrigatórias e consignadas pela lei (RTP, ICA,...).
2. No âmbito da Conferência Geral da UNESCO, a ministra da Cultura afirmou que "o compromisso do programa do Governo é ao longo de quatro anos crescer progressivamente até atingir 2% da despesa das receitas gerais do Estado”, ou seja, isto significa que o aumento do POC será directamente financiada pelas receitas do OE. Este será de facto o tipo de incremento orçamental que os agentes culturais reivindicam há muito, pois, é o que reflecte um verdadeiro compromisso do Estado (governo) com o sector cultural.
3. No entanto, no programa Prós e Contras de 18 de Novembro, a ministra da Cultura esclarece que o compromisso do governo em atingir os 2% será suportado em verbas oriundas de outros ministérios e fontes externas. Isto porque, diz a ministra no referido programa, o investimento em cultura é transversal aos outros sectores: educação, ciência, ambiente, políticas de igualdade...
A partir deste dia 18 novembro a confusão adensa-se e teme-se o pior. E o pior é a ministra ter-se munido da narrativa da transversalidade sectorial da cultura para justificar o aumento do Orçamento do POC por via da receita consolidada e não da receita geral.
Defender que o OE para a cultura deva ser financiado intersectorialmente (educação, turismo, economia, etc.) pelo motivo de a acção cultural ser transversal e porque, por exemplo, o turismo financia a cultura quando investe no restauro de bens patrimoniais, é de algum modo defender a evidência de que que não existe sociedade sem cultura ou que a cultura é um pilar consubstancial à sociedade, ou seja: que não existe sociedade sem cultura.
Porém, este reconhecimento deveria ser sustentado na perspectiva reversa: é a cultura que, nas sociedades contemporâneas e no capitalismo tardio, contribui directa e indirectamente para a economia nacional, para a diplomacia cultural, para as industrias criativas e culturais, para a atractividade das cidades ou para a imagem externa de um país que se quer cultural e artisticamente emancipado.
Sejamos claros, é a cultura que favorece o turismo, e não o contrário. Os turistas visitam museus em demanda dos conteúdos culturais lá expostos, e não por haver meios de transporte com aquele destino. Exija-se assim mais cuidado e respeito pela sustentabilidade da precária e delicada contextura dos sistemas criativos.
Há que definitivamente considerar a dualidade intrínseca ao tecido cultural das actuais sociedades, porque se por um lado os ecossistemas culturais são per se um elemento frágil no contexto das sociedades neoliberais, tendo sido fortemente abalados pela crise económica e financeira pós-2008. Por outro, a Cultura não é um sector de nicho nem de menor dimensão e impacto nas economias contemporâneas, equiparando-se mesmo a sectores como a agricultura, a industria alimentar ou o ramo automóvel.
Do ponto de vista financeiro, segundo informação da DGAE, em 2016 o valor acrescentado bruto (VAB) da economia da cultura atinge já os 3 mil milhões de euros anuais, representando cerca de 3,6% do total nacional. Assim, poderia o governo pensar de forma inversa, investindo mais no tecido cultural e criativo através da receita geral do OE no POC, relativizando as fontes de financiamento externas e as receitas variáveis do contributo dos outros sectores para o OE da cultura, pois isso enfraquece o papel central da cultura na sociedade e na economia.
Se a produção artística, criativa e cultural já contribui com 3,6% para o PIB nacional, mais razão há para que se continue a expandir o investimento próprio do Estado na criação de melhores condições para o desenvolvimento cultural sustentável e para a vitalidade cultural dos territórios. Fazer com que o financiamento orçamental da cultura fique dependente do contributo discricionário de outros serviços da administração pública e financiamentos externos, talvez não seja a melhor maneira de favorecer o contributo da artes e da cultura para a economia da criatividade, nem de defender a cultura como um direito fundamental dos direitos humanos.
O apoio às artes
A reactividade crónica a cada saída dos resultados provisórios dos concursos de apoios às artes (Dgartes) evidencia cada vez mais uma retórica esgotada e sem saída. Partidos na oposição e agentes culturais reprovam o resultado dos apoios listando as entidades elegíveis (com uma avaliação igual ou superior a 60%) que não receberam apoio, apelando a uma resolução do problema por via da intervenção directa do governo – ou seja, anulando a legitimidade democrática e o dever cívico das comissões de apreciação - como se houvesse alguma racionalidade possível em defender-se isso. Não se conhece nenhum concurso em que os candidatos pré-seleccionados como elegíveis tenham garantias automáticas de financiamento. Em qualquer concurso existem no mínimo três fases ou categorias, por esta ordem: os candidatos, os seleccionados (elegíveis) e os admitidos (apoiados).
Na Cultura acha-se que todas as entidades consideradas elegíveis pelos júris dos concursos têm de ser automaticamente apoiadas. Seria óptimo na perspectiva de um financiamento público sem fundo à vista, mas quanto é que custaria apoiar todas as actuais entidades elegíveis (em 2019?), e em 2020, 21,22 quando forem cada vez mais as entidades elegíveis? O PCP queixa-se da verba que é “pouca”, mas foi o mesmo PCP – acompanhado pelos agentes culturais - quem propôs a verba de 25 milhões como a necessária para o apoio as artes em 2018. Este mesmo montante foi efectivamente inscrito no orçamento da DGartes em 2019. Mas quanto deve ser afinal o orçamento do financiamento anual dos apoios às estruturas culturais? Vai crescendo progressivamente sem limite orçamental? Pretendem um novo modelo depois de dois anos de debates, consultas públicas e grupos de trabalho especializados. Apesar da participação sistemática e aberta, diz-se que este modelo também não serve. Que novo modelo então?
Dito isto, importa reconhecer que de facto os programas de apoios da Dgartes deveriam ter já afectados, tal como inscrito no seu Plano de Actividades/2019, mais de 27 milhões de euros aos apoios. Contudo, tal como acontece noutros sectores importantes para o bem estar social (saúde, educação, entre outros), a austeridade económica das cativações do super-ministro Mário Centeno sobrepõe-se às necessidades concretas dos portugueses num contexto de precariedade laboral alargada.
Para além da espuma dos dias, existe a necessidade concreta de se repensarem os modelos de financiamento dos apoios à artes após a entrada em vigor da designada descentralização cultural - ou municipalização da cultura, pois, julgamos nós, não haver razões para se continuar a reclamar exclusivamente do proteccionismo do Estado Central, até porque o contributo financeiro dos municípios para a cultura equivale a cerca do dobro do OE para a Cultura.
Consequentemente, é cada vez mais oportuno que os agentes culturais – e a sociedade civil, em geral – questionem se existem os mesmos desígnios estratégicos, focados no desenvolvimento estrutural dos sectores culturais e criativos, em cada um dos municípios. E, nesse contexto haveria que exigir com dupla veemência aos poderes públicos de proximidade (autarquias) a sua quota parte de responsabilidade no apoio legitimo às artes, através de concursos transparentes, idóneos, isentos e democráticos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico