Não é alto nem baixo, nem demasiado magro nem excessivamente gordo, mas Bob Dylan, com o colete de pistoleiro, o lenço ao pescoço e um ar de solidão indomável — com o andar bamboleante de quem é demasiado cool para aquele palco —, distingue-se dos mortais ao flutuar acima da multidão com a sua voz rouca.
A imagem, tantas vezes repetida no documentário The Rolling Thunder Revue – A Bob Dylan Story (2019), é a homenagem de Martin Scorsese a um artista ímpar. Para isso, Scorsese recorre a planos prolongados dos concertos de Dylan, sem cortes, sem voz off, só música. É a mão de um realizador experiente, alguém que sabe perfeitamente o que quer e que conquistou o seu espaço no mundo do cinema. Alguém capaz de reconhecer que quando Dylan canta, o mundo pára.
The Rolling Thunder Revue é também o nome da digressão que Bob Dylan e seus acólitos fizeram pela América do Norte entre 1975 e 1976, marcando o regresso do cantor à ribalta depois de um silêncio de oito anos.
Estava-se no rescaldo do movimento hippie e Bob Dylan, que cimentara a sua posição como o pregador da cultura beatnik, desaparecera misteriosamente para deixar uma geração inteira sem voz. Nos festivais, nas ruas, nos teatros, improvisavam-se canções de protesto e de amor, sem a profundidade nem a mestria de Dylan. Faltava o conhecimento da natureza humana, escasseava a reflexão característica dos artistas porque uma das tarefas de quem dedica a vida à arte é estudar o comportamento do ser humano.
Eis por que os músicos, os escritores ou os realizadores de cinema (entre muitos outros) são fundamentais para o desenvolvimento da civilização: porque decifram o mistério que somos, estabelecendo pontes entre a alma e o cérebro através das suas obras. Descartes pensava e, por isso, existia. Os artistas sentem, por isso criam — e, pelo caminho, ajudam-nos a perceber o que é isto de sermos humanos (um enigma que nos apoquenta a todos com maior ou menor intensidade). São os nossos gestos e os nossos pensamentos. A sua ausência deixa-nos reféns das nossas próprias limitações. Bob Dylan foi vital para o activismo da década de 60 por causa da força mobilizadora das suas músicas, capaz de unir milhares de pessoas em manifestações contra o armamento nuclear, o nacionalismo ou a guerra do Vietname. O regresso do bardo era, pois, imperativo. E ele lá acabou por voltar. Surgiu em Plymouth a uma quinta-feira, de harmónica nos lábios e com uma expressão de menino na cara.
Ao longo do documentário, os espectadores são confrontados com várias versões de Dylan: o trovador cigano, o judeu vagabundo, o xamã índio. No entanto, depois de duas horas, continuamos sem conhecer o indivíduo por detrás da cara pintada de branco e o que esconde por debaixo do chapéu de abas largas e plumas que usa em quase todos os concertos. Observamos várias vezes os olhos azuis muito arregalados do músico, enquanto grita como um demónio em cima do palco, mas nem sinal do homem que nasceu como Robert Zimmerman. O que perdura depois dos créditos são as líricas viscerais do poeta e a vitalidade contagiante do marginal que nunca procurou enquadrar-se na sociedade, do eterno rebelde que percorreu o mundo de guitarra às costas a descobrir histórias para as transformar em canções.
Encorajo-vos a passar os olhos por este documentário que transcende os reinos do rock’n’roll, dos blues e do folk. Se o fizerem, estejam atentos às considerações sobre o universo, felicidade e arte que escorregam por entre a anarquia das cenas; mas, acima de tudo, desfrutem de duas horas de boa música.