José Mário Branco
O que mais me arrepiava era o início daquele disco. Aqueles segundos de ruído na Gare d’Austerlitz?, que nunca soube onde estava, se naquele disco, se naquela infância, se naquela melodia que ia entrando como sempre entram os comboios.
Conheci o José Mário Branco numa sessão de gravação para um disco do Fausto. Éramos um quarteto de cordas, se bem me recordo; lembro-me bem mais de o violoncelista ser o André Ferreira, um amigo que eu amarei sempre bem mais do que qualquer memória. Lembro-me de o José Mário Branco ser um velho bastante insatisfeito. Não estava contente com alguns arranjos que ele próprio tinha feito para as músicas do Fausto. Fartou-se de mudar notas, experimentar coisas novas. Não deve ser fácil musicar os poemas do Fausto. Têm muitas sílabas, têm palavras fantásticas e muitos barcos. Foi a primeira e última vez que li aquela partitura, não sei que álbum será esse, nem que músicas serão essas, tenho um problema em manter registo das coisas. Lembro-me de alguém beber muito whiskey. Seria o José Mário Branco? Talvez fosse o Fausto? Talvez fossem os dois. Tenho pena de não ter bebido com eles uma garrafa inteira, com os pés no carvão. Nenhum deles saberá que raio de violetista esteve com eles ali naquele dia, e só os recordo porque são dois homens que eu sempre assombrei no coração, com coisas que não são palavras. Têm sons lá dentro.
Mas o que mais me lembro do José Mário Branco não está nessa tarde. Estava num gira-discos da Sony que um dia os meus pais compraram lá para casa. “Alta-fidelidade”, diziam eles. Nunca soube que fidelidade era essa, nem porque lhe chamavam “aparelhagem”, que ainda hoje me parece uma palavra rouca. Aquele era só um disco enorme no jardim da guerra. Feito de vinil, negro como um disco deve ser. Acho que tinha um olho enorme desenhado ou esboçado, e um poema que vim a descobrir que era de Camões, e durante muito tempo passou por José Mário Branco. Mas o que mais me arrepiava era o início daquele disco. Aqueles segundos de ruído na Gare d'Austerlitz, que nunca soube onde estava, se naquele disco, se naquela infância, se naquela melodia que ia entrando como sempre entram os comboios. Talvez por nunca ter palavras, nunca confundi aquele lírio e ou aquele canivete com as palavras de ninguém. Tiveram sempre a mesma idade do que eu.
É também por isso que hoje escrevo. Por esses segundos de silêncio, e pela poesia de Natália Correia, e pela inquietação daquele bigode farfalhudo que nunca me conheceu, apesar de me ter imaginado no som de um instrumento.
Por isso acho tão estúpidas estas homenagens. Por esses minutos de ruído.