Arquitectura e o sector imobiliário
As cidades são corpos vivos que têm de se ajustar às diferentes realidades num dinamismo saudável, mas não pode ser papel do arquitecto criar estas mudanças. Pode certamente contribuir com ideias e vontade, mas não se peça a um gabinete para ser um objector de consciência e recusar projectos porque não concorda com a ideia programática do promotor imobiliário.
O papel de um arquitecto dentro do sector imobiliário é dinâmico e abrangente, como se a própria arquitectura já não o fosse o suficiente.
Tomemos como exemplo o mercado imobiliário de cidades como Lisboa e Porto: são actualmente dois mercados em ebulição com a recente procura por parte de entidades estrangeiras, quer sejam compradores finais ou promotores. Em comparação com outras capitais e segundas cidades da Europa, Lisboa e Porto continuam a ser consideradas como destinos atractivos para investidores imobiliários e a tendência, segundo vários indicadores, é para que a situação se mantenha durante mais alguns anos.
É fácil de perceber que a recente escalada de preços foi catalisada por compradores com alto poder de compra e que a maioria dos habitantes portugueses de Lisboa e Porto não consegue competir. Mas estas são as leis do mercado estabelecidas há muito tempo. Os preços são calculados em função do que a procura está disposta a oferecer. Também parece óbvio que não serão apenas estrangeiros a deter agora toda a malha urbana das cidades, mas o que tem acontecido claramente é uma rápida invasão das zonas mais apetecidas das cidades, nomeadamente de ambas as baixas.
Se por um lado existem novos proprietários estrangeiros nessas zonas, também é verdade que existem muitos portugueses que, aproveitando a onda gigante de turismo, usam as suas propriedades (adquiridas recentemente ou não) para optimizar os seus rendimentos com o alojamento local. Este tipo de alojamento é, aliado à falta de casas, factor fundamental para os preços inflacionados praticados em arrendamentos de longa duração. Chega-se agora ao ponto de se obter uma prestação de crédito habitação significativamente mais baixa que qualquer renda no centro das cidades. É certamente uma boa altura para um proprietário vender o seu imóvel — encaixará certamente um bom valor — mas a questão prender-se-á se o objectivo passará por continuar a viver na cidade e numa tipologia semelhante. Se a resposta for afirmativa, terá de gastar quantia semelhante e resta esperar que encontre de facto tal imóvel. Toda esta dinâmica vem acentuar a gentrificação dos centros urbanos que não vem só de agora. Há muito que as baixas estavam degradadas, mas vem dificultar a repovoação dos mesmos centros numa altura em que finalmente a população portuguesa começava a recuperar algum poder de compra.
Um promotor imobiliário tem todo o direito de procurar os melhores negócios e gerar os lucros que conseguir; resta saber a que custo e quem sairá beneficiado ou prejudicado. E não se pode encarar todo este processo como uma materialização de todo o mal na Terra. É o mercado imobiliário que em grande parte tem gerado emprego e riqueza e que alavancou uma tão necessária reabilitação dos centros históricos e envolventes das cidades de Lisboa e Porto.
A grande questão será perceber se essa reabilitação está a ser pensada e executada com as pinças necessárias para no futuro, quando o turismo quebrar e os investidores estrangeiros procurarem novos destinos, os centros estarem preparados para receberem outro perfil de moradores. Pessoas que terão de ter tipologias que lhes permitam poder construir uma família. Não serão os abundantes T0 de 35 metros quadrados que lhes permitirão fazer isso. Não será certamente a falta de uma visão estratégica para dotar os imóveis de lugares de estacionamento que irá atrair jovens casais de volta ao centro. Não será a resistência burocrática na mudança da afectação do imóvel. As cidades são corpos vivos que têm de se ajustar às diferentes realidades num dinamismo saudável.
Mas não pode ser papel do arquitecto criar estas mudanças. Pode certamente contribuir com ideias e vontade, mas não se peça a um gabinete para ser um objector de consciência e recusar projectos porque não concorda com a ideia programática do promotor imobiliário. O papel de um arquitecto que gere um gabinete tem também de ser o de remunerar bem os seus colaboradores, num mercado mal pago para os técnicos, e para isso acontecer tem de trabalhar com o que lhe é proposto.
Às entidades decisórias resta estarem atentos e jogarem o jogo de forma preventiva, com visão e estratégia a longo prazo.