Em defesa do Serviço Nacional de Saúde
Defender o SNS implica reconhecer as suas qualidades e encarar com realismo os seus problemas na procura de soluções que garantam sustentabilidade e evitem a sua progressiva erosão.
Nos 40 anos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a prestigiada revista Lancet alertou para as consequências da redução progressiva do orçamento público da saúde em Portugal. Importa destacar que o SNS presta um serviço extraordinário às populações e é um instrumento fundamental para a coesão social do país. Defender o SNS implica reconhecer as suas qualidades e encarar com realismo os seus problemas na procura de soluções que garantam sustentabilidade e evitem a sua progressiva erosão.
O SNS tem uma organização altamente confusa. Os tipos e níveis de serviço de cada hospital não respeitam lógicas de qualidade, de densidade populacional ou de acessibilidade regional perceptíveis. Na maior parte das vezes, foram decididos por interesses instalados no próprio SNS ou por pressão de agentes políticos locais/regionais. É urgente reorganizar toda a rede hospitalar, diferenciando níveis de cuidados e corrigindo a concentração geográfica de alguns serviços.
As urgências hospitalares consomem grande parte dos recursos do SNS. A sua sobre-utilização, motivada pela falta de alternativas e pela iliteracia em saúde, tem consequências nefastas e atrasa a resposta às situações verdadeiramente urgentes. O sistema de “porta aberta” para serviços altamente diferenciados precisa de ser revisto, oferecendo alternativas efetivas às urgências hospitalares. A Urgência Metropolitana do Porto é um modelo de gestão de recursos que deveria ser replicado no Minho e na Grande Lisboa.
As disfunções organizacionais do SNS resultam numa ineficiente gestão de recursos. O tempo dos médicos e enfermeiros é consumido pelas urgências quando deveriam privilegiar-se as consultas externas e os hospitais de dia, contextos em que é possível criar uma relação de confiança com os pacientes. Com tempo protegido para os atendimentos urgentes dos seus utentes evitam-se as “falsas urgências”. Com a redução do número de utentes por Médico de Família e a disponibilização de efetivos serviços de consultoria por outras especialidades reduzem-se as referenciações para os hospitais.
A sobrecarga dos profissionais de saúde é evidente. Para além dos elevados custos pessoais, a exaustão deteriora a qualidade dos serviços, reduz a eficiência e afasta os profissionais do SNS. Os horários não são adequados à prestação de cuidados (sobrecarga, trabalho noturno excessivo, turnos imprevisíveis e desrespeito pela conciliação do trabalho com a vida pessoal). Algumas chefias estão mais preocupadas em produzir atos clínicos em quantidade do que em garantir a sua qualidade. É urgente que os serviços de saúde deixem de ser geridos como autênticas linhas de produção industrial. Para isso, precisamos de evoluir de um modelo de financiamento baseado no número de actos clínicos para um modelo assente na avaliação da qualidade e dos ganhos em saúde.
Tal como a Boieng se despenhou por ação de gestores que cortaram 20% no investimento em engenheiros que sabem pôr um avião a voar, também o SNS está em risco quando se desinveste continuamente nos profissionais que sabem cuidar de quem precisa.
Num esforço para proteger os utentes do SNS e moderar a sua progressiva despersonalização, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros têm definido condições mínimas para a prestação de cuidados com qualidade. Foram definidos tempos-padrão de consulta (que urge respeitar) e é preciso identificar o número de profissionais necessários para garantir o funcionamento de cada serviço em condições de segurança.
Ao contrário da percepção pública, a verdade é que não há falta de médicos em Portugal – há milhares de jovens médicos à espera de uma oportunidade para ingressar no SNS enquanto outros médicos altamente especializados e indispensáveis para a sua formação o abandonam por insuficientes condições de trabalho. O que tem faltado ao SNS é capacidade para o organizar de forma eficiente, coragem para corrigir assimetrias regionais, visão para assimilar a inovação que emerge das universidades, investimento para manter os profissionais que são necessários e sensibilidade para melhorar as suas condições de trabalho e, por consequência, a qualidade dos serviços que prestam. Só assim garantimos um SNS capaz de cumprir a sua missão nos próximos 40 anos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico