Violette caminha seis mil quilómetros para aliviar a dor
É francesa, tem 35 anos e sofre de fibromialgia. Está a caminhar 6000 km, incluindo passagem por Portugal, para alertar para a doença caracterizada por dores constantes na maior parte do corpo.
Violette Duval é alta e esguia, rosto bronzeado e emoldurado por um sorriso. Encontramo-nos em Vila Nova de Milfontes, onde nas últimas duas semanas recupera de lesões nos joelhos – provocadas, acredita, por não ouvir o seu corpo e levá-lo a um pouco mais do que o limite, nesta grande viagem que decidiu fazer com um objectivo: dar a conhecer a fibromialgia. Quer alertar para a lentidão e dificuldade do diagnóstico, para a falta de reconhecimento da doença e para as taxas de suicídio que ela provoca.
Em França, refere, existam cerca de 200.000 afectados. Em Portugal, a doença atinge cerca de 2-4% dos adultos, sendo mais frequente em mulheres. A Sociedade Portuguesa de Reumatologia, a especialidade que trata a fibromialgia, caracteriza-a como uma doença com “dor músculo-esquelética generalizada, difusa, muitas vezes migratória e por um aumento da sensibilidade a uma variedade de estímulos que podem causar dor e desconforto, como o esforço, stress ou os ruídos”. “Pode ter períodos de acalmia ou exacerbação, a dor e o desconforto podem ser flutuantes. Acompanha-se frequentemente de fadiga, alteração do sono, problemas de memória e concentração.” A Myos – Associação Nacional Contra a Fibromialgia e Síndrome de Fadiga Crónica, associação não médica e sem fins lucrativos, explica “que afecta homens, mulheres e crianças de todas as idades, etnias, estatutos, em que 80% a 90% são mulheres entre os 20 e os 50 anos.”
A caminhada como escape à dor
Violette Duval tem 35 anos e quer falar sobre a fibromialgia. Quer mostrar que não é preciso parar de viver com qualidade só porque recebeu este diagnóstico. No seu caso, aliás, encontrou na caminhada o escape para a contabilidade, que a mantinha agarrada a uma secretária várias horas por dia – “Quantas? Demasiadas...” – e que havia escolhido após várias lesões enquanto adolescente a terem impedido de seguir uma carreira no basquetebol, onde jogou “de forma séria”, e, mais tarde, como professora de educação física.
“As primeiras dores foram nas mãos e nos pés – o que não é comum –, por isso o diagnóstico demorou dois anos. Tinha dores o tempo todo... Mas sabia que não era apenas psicológico ou emocional, apesar de os médicos insistirem que era... Sim, não adorava o meu trabalho e estava infeliz, mas essa não era a causa. As dores eram tantas que não sentia a cara, não conseguia dormir, e o médico queria que continuasse a trabalhar, o que simplesmente não era possível. Um especialista de Paris deu-me o diagnóstico. Comecei a ser seguida no Centre du Douleur, onde me deram medicamentos para epilépticos, comprimidos que adormecem os nervos mas não tratam a doença. No meu caso o diagnóstico acabou por ser ‘rápido’, mas há pessoas cuja dor é tanta e tão prolongada que a ideia do suicídio parece ser a única solução. Eu não quero chegar aí. (…) O Estado francês não reconhece a incapacidade de trabalhar, para a obtermos somos obrigados a escrever depressão. Ora, eu não estou deprimida, por isso para mim é importante o reconhecimento. Ter um nome para a doença, após fazer tantos exames, é um alívio.”
São chamados de preguiçosos, dizem-lhes que é psicossomático, que os exames não mostram patologia. E o paciente, entre a dor e o desânimo, começa a sentir-se perdido. “Na fisioterapia comecei a ter esta ideia de viajar e isto ajudou-me em termos emocionais, ter um objectivo. Apercebi-me que caminhar e estar na natureza era benéfico...” Fez duas viagens de mochila e transportes públicos, pela Ásia e Austrália, e pela América do Sul, enquanto ia arranjando pequenos trabalhos. “No Uruguai, conheci um homem que viajava a caminhar, com um trolley e com um cão... E eu disse para mim: que boa ideia! Cheguei da América do Sul com a ideia de fazer algo a caminhar. Estive um ano em França e através de crowdfunding e promoção consegui financiamento para fazer esta viagem.”
Caminhar para alertar
Esta é a terceira viagem, mas a primeira em caminhada. Serão 6000km no total. Partiu a 13 de Abril de Grandville, na Normandia, e já fez, rumando a Sul e a Oeste, toda a costa francesa, e a espanhola, até chegar à portuguesa. Vem acompanhada da sua huguette, o trolley que empurra e que evita a mochila que tão difícil é para a sua condição física. Quando este texto for publicado, estará a caminho do Algarve. Porquê este percurso? “Preciso do mar. E sempre quis conhecer Portugal – e o Algarve.” De seguida, é continuar a caminhar em direcção a Noroeste novamente por Espanha e França, até chegar à cidade onde escolheu viver a partir do final do ano: “Grandville é demasiado húmida. Marselha será melhor para a minha doença.”
“Caminho cinco dias e descanso dois. Caminho uma hora e paro para comer qualquer coisa. Percorro cerca de 25-30 quilómetros por dia, faço em média cinco quilómetros por hora, mas se encontrar pessoas pode ser mais demorado... Dedico tempo a falar com elas.” Como se motiva a sair da cama todos os dias? “Antes de mais nada, tomo café – é muito importante, quando temos fibromialgia acordamos cansados, por isso o café é essencial... Depois faço um post no Facebook, uma espécie de compromisso com as pessoas que me seguem e que me motiva. Calço os meus sapatos especiais [têm umas palmilhas feitas por um podologista que reduz 80% do impacto nos joelhos], pego na huguette e vou...”
“A maior parte das vezes caminho sozinha, às vezes acompanham-me em trechos... Não me sinto só, adoro estar sozinha e este é o meu projecto, e conheço muitas pessoas, mesmo cinco minutos de conversa já ‘alimentam’.” Violette está “sempre, sempre a pensar...” e a caminhada serve como meditação: “Tenho de ser mais forte que uma pessoa normal, dou mais de 100% da minha capacidade física. A mente tem muito poder, mas o corpo também... É quase como se o meu corpo me tivesse dito: vai caminhar.”
Que responde quando lhe dizem ‘não pode trabalhar mas pode andar 30km por dia’? “Não é o mesmo. Até muitas pessoas com fibromialgia não me entendem... Mas cada pessoa é diferente e eu fiz muitos desportos, já tenho esta mentalidade. Estou focada no meu target: divulgar a doença. É o projecto da minha vida. Entendo que digam isso, mas andar e ficar o dia todo numa secretária, para o corpo, e a mente, não é nada a mesma coisa. Se andar sinto-me melhor. Qualquer pessoa que faça desporto sabe como é benéfico para o seu corpo e eu sei como caminhar é benéfico para o meu”, resume.
Faltam mais de dois meses para terminar e o Inverno aproxima-se, mas Violette está confiante: “Faço isto por mim e pelos outros, e recebo muito amor de todas as pessoas... Quando acabar vou estar de rastos mas estou superfeliz a fazê-lo. Quando viajo sou feliz, caminho, tiro fotografias. Regressar e voltar a uma vida normal será complicado. Às vezes penso que ter fibromialgia até foi bom, permitiu-me viajar, devo todas estas viagens à doença... Cada viagem é diferente e aprendemos muito sobre nos próprios. Esta tem sido muito profunda. Toda a gente sabe da doença, não evito a conversa. Estou doente, tenho fibromialgia, mas caminho, viajo e estou feliz...