O princípio do fim da liberdade de expressão?
A facilidade com que qualquer pessoa pode hoje expressar a sua opinião é simultaneamente a força e a fraqueza da democracia.
É frágil o equilíbrio entre a defesa de valores democráticos e a convivência quotidiana com ideias dissonantes. Será que somos democráticos na exacta medida em que isso não perturba os nossos valores e crenças? Deve haver liberdade de expressão numa sociedade democrática para quem defende valores não democráticos? Ou será que vivemos numa época em que ser democrata é defender a censura?
Ser democrata significa antes de mais tolerar e respeitar o espaço da diferença. No fundo, conviver com a diversidade e gerir o conflito. Logo, em teoria, um democrata não rejeita a liberdade de expressão do que é diferente. No entanto, a atitude democrática tende a esgotar-se quando se discorda veementemente da opinião do ‘outro’ e se considera que esta não deve ter direito ao mesmo espaço que a nossa. O que será então mais democrático: dar espaço à expressão de ideias que desafiam o que é considerado democrático na nossa sociedade, ou simplesmente silenciá-las, limitando a liberdade de expressão? A importância que as redes sociais têm na propagação de todo o tipo de conteúdos torna esta última opção especialmente difícil de implementar, a não ser que se recorra à censura.
É hoje indiscutível o impacto da tecnologia na democracia (eleições, debate político, amplificação da visibilidade de extremismos, etc.), mas muitos destes efeitos não são puramente tecnológicos, são manipulações intencionais. Para promover conteúdos específicos, o Facebook tem deliberadamente alterado o algoritmo que selecciona e ordena as publicações, seja com base no emissor (amigos, órgãos de informação de referência, etc.), no tema, ou no próprio formato da mensagem (vídeo, por exemplo). A manipulação dos conteúdos através de algoritmos, de trolls (utilizadores que publicam conteúdos controversos para provocar reacções) ou bots (aplicações que propagam mensagens de forma viral para influenciar opiniões e discussões) explica parcialmente os fenómenos de radicalização e de polarização das opiniões.
Poucos discordarão de argumentos que apresentam a liberdade de expressão como uma das bases essenciais da democracia, mas a dúvida que se coloca hoje é se a liberdade de expressão é o direito que mais merece protecção, porque pode ser manipulada artificialmente, e muitas vezes a liberdade de expressão de uns significa a opressão de outros. Quando se permite, por exemplo, a publicação de conteúdos falsos, ofensivos, ou que incitam ao ódio e à violência. A abertura de espaços online para partilha de experiências e opiniões, através das plataformas de redes sociais, não só diminuiu a distância do ‘outro’ e da diferença (o que tem despertado muitos populismos), como está a banalizar a falta de civilidade e mesmo a ofensa.
As características das redes sociais intensificam angústias e ressentimentos e amplificam a sua visibilidade. Algumas consequências disso são já conhecidas: o ódio polariza e prepara o clima para que a desinformação e as notícias falsas sejam aceites com pouco ou nenhum questionamento. Este tipo de ambiente terá contribuído para o “Brexit” e para a eleição de Donald Trump em 2016. O ambiente online reflecte a realidade, mas devido à difusão viral de alguns conteúdos acaba por influenciar também a realidade, o tom dos debates e as opiniões.
Existem argumentos pró e contra banir utilizadores e comunidades das plataformas online (Facebook, Twitter, Reddit, etc.), mas pouco consenso relativamente aos procedimentos a adoptar. Trump publica frequentemente conteúdo a vilipendiar grupos e indivíduos e não cumpre as normas do Twitter, mas, apesar disso, esta plataforma tem rejeitado vários pedidos para fechar a sua conta. O comportamento dos trolls é uma armadilha, ao ignorar as provocações corre-se o risco de parecer conivente, ao responder amplifica-se a mensagem, contribuindo para que se torne viral. Os bots, por seu lado, podem difamar, lançar ataques contra pessoas ou grupos, exagerar os receios e a raiva das pessoas através da repetição de mensagens, exagerar a popularidade de pessoas e ideias, minar debates genuínos e espalhar conteúdos falsos. É já conhecida a influência que tiveram no crescimento eleitoral do partido alemão de extrema-direita AfD (Alternativa para a Alemanha): estudos relacionaram a actividade online do partido com o seu crescimento em sondagens de opinião.
Um dos principais defensores da liberdade de expressão ilimitada é Mark Zuckerberg, que apelou, recentemente, à liberdade do Facebook para permitir a publicação de conteúdos falsos e incendiários, justificando essa atitude com o facto de não querer intervir no direito à liberdade de expressão de cada um. Mark Zuckerberg apresenta-se como um libertador que democratizou a publicação de conteúdos e defende que não cabe a uma empresa privada a função de regular a liberdade de expressão, mesmo tratando-se de informação falsa. Permite assim que o Facebook continue a publicar conteúdos de utilizadores que espalham todo o tipo de teorias da conspiração, incluindo os que negam o Holocausto, uma atitude que tem sido vista como a manipulação intencional de emoções impulsionada pelo lucro.
A Internet está de facto a testar o consenso sobre a liberdade de expressão. Quando foi criada, assentava na ideia de que todos deviam ter oportunidade de fazer ouvir a sua voz e todos deviam ter acesso a todos os conteúdos, incluindo os falsos. Caberia a cada um a selecção e a avaliação. Mas a prática da Internet como o paraíso da liberdade de expressão tem demonstrado a fragilidade da ideia inicial, porque muitos dos conteúdos publicados propagam informação falsa, incitam à violência e fomentam a radicalização e o ódio.
A facilidade com que qualquer pessoa pode hoje expressar a sua opinião é simultaneamente a força e a fraqueza da democracia. O problema é que se está a tornar uma grande fraqueza com riscos sérios para a qualidade e o futuro da democracia. Quais devem ser então os limites do que se pode escrever e dizer em público? Será que liberdade de expressão significa ser livre para dizer qualquer coisa em qualquer altura, ou um ambiente propício à troca de ideias onde todos podem ser incluídos sem receio de serem insultados? Será possível promover um espaço aberto para o diálogo sem facilitar também a propagação de mentiras e intimidação?
Há muitas áreas cinzentas e nem o problema nem as possíveis soluções são lineares. Na verdade, a censura poderá ter um custo mais elevado do que a doença que se tenta curar. Mas esta é a oportunidade para pensar numa regulação séria do online. Este tem sido um tema forte na campanha da democrata norte-americana Elizabeth Warren, que defende a regulação e a divisão dos grandes monopólios. Devem os gigantes da Internet (Facebook, etc.) policiar os conteúdos que publicam, ou devem ser os governos e as organizações internacionais a fazê-lo?
As palavras de Herbert Marcuse fazem-nos pensar: o compromisso dos liberais com o discurso livre é absurdo, porque este é apenas mais uma forma de opressão. Mais de cinquenta anos depois, é essencial encontrar formas de assegurar a participação de todos, regulando simultaneamente os conteúdos publicados. Aqui os governos e as organizações internacionais têm um papel crucial, porque não se pode deixar a qualidade do discurso nas mãos de empresas privadas que se regem unicamente pelo lucro. Se isso não for feito (e depressa), a participação poderá acabar por matar o que devia estar a salvar: a democracia.