Urgências de Pediatria – porque estão em colapso? “Com a verdade me enganas”
Os portugueses merecem cuidados de saúde sólidos para os seus filhos e já tarda a sua concretização. Ignorá-lo não pressagia nada de bom.
Com os meses frios e as inevitáveis infecções da época, as urgências hospitalares têm crise cíclica. No caso das urgências de Pediatria, chegou mais cedo aos títulos dos jornais embora já existisse, há meses, em vários hospitais. Vários protagonistas da situação têm feito declarações e acusações sobre a causa da rutura em numerosos serviços de Pediatria, bem para além dos que são mencionados nas notícias. Seguramente todas essas declarações são sinceras e invocam os factores habituais de agravamento, mas será que não haverá outros igualmente relevantes que necessitam de ser equacionados para uma resolução estável, em vez de paliativos, por definição, temporários?
1. Carência de médicos nos serviços. A austeridade e novos modelos de gestão trouxeram redução das contratações para compensar os médicos que iam abandonando os Serviços. O conceito de “quadro médico” que definia o número de profissionais de cada grau necessário para o desempenho das missões do serviço foi abolido e passou a vigorar uma contratação individual, duramente resgatada das administrações e do Ministério da Saúde. Essa situação foi ampliando um buraco geracional que deixou de preencher atempadamente as vagas e de manter o desfasamento etário de renovação progressiva. Criou-se então um grupo de médicos que deixaram de cumprir os difíceis turnos de urgência, por justificada progressão etária, e um outro, mais jovem, sobre quem recai todo esse trabalho de urgência. O progressivo aumento da oferta privada, mais bem remunerada e menos penosa, foi atraindo substancial número de profissionais e deixando cada vez menos a assegurar o trabalho. Esta situação só podia desaguar em novo estímulo à deserção dos serviços públicos num infernal ciclo vicioso, e a maior parte dos recursos passam a ser concentrados na urgência em desfavor de atividades programadas que devem ocupar lugar central dos Serviços Hospitalares.
2. Desvalorização da carreira. O trabalho médico envolve enorme responsabilidade e penosidade que merecem remuneração digna. Toda a perda de remuneração e estagnação na carreira não fortaleceram a motivação dos médicos. As condições remuneratórias oferecidas no sector privado são tentadoras e não se pode esperar que os profissionais as ignorem. Sem revalorização remuneratória será, seguramente, difícil atrair de volta ao serviço público os muitos médicos que o abandonaram por desencanto.
3. Promoção da Pediatria em todos os níveis de cuidados de saúde. A Pediatria é a medicina de grupo etário do ser em desenvolvimento. É assim que a maioria dos Portugueses a entendem, e bem, ao procurar um pediatra para cuidar dos seus filhos. Todos reconhecem que os médicos de Medicina Geral e Familiar (MGF) são profissionais competentes, mas a sua formação pediátrica consiste em dois meses, claramente insuficiente para dominarem com segurança todas as vertentes do crescimento normal e da avaliação da doença aguda e crónica. A qualidade individual de cada um desses médicos decorre em boa parte da experiência individual que vão acumulando ao longo da carreira, mas não de formação sólida. O exercício de funções com limitada formação ou creditação cria riscos, como recentemente se viu noutro caso mediático. É profundamente errado ignorar esse risco e esperar que um drama ocorra para fazer actos de contrição. Manda o senso e a boa gestão que os actos diagnósticos e terapêuticos sejam desempenhados por profissionais devidamente formados. Não se questiona que uma criança de idade escolar ou adolescente seja corretamente avaliada por um médico de MGF, mas não há dúvidas que nos primeiros anos de vida a valorização de pequenos sinais clínicos exige sensibilidade decorrente de adequada formação prévia. Se os pais procuram ajuda para o seu filho pequeno e o médico se mostra inseguro, encaminhando-o para o SU hospitalar, no episódio seguinte é provável que se dirijam diretamente a este em vez de repetir o caminho anterior. Por isso, proporcionar cuidados de Pediatria por pediatras nos centros de saúde foi uma promessa eleitoral muito correta, e é justo que a vejamos concretizada rapidamente, para descentralizar o atendimento na doença aguda e dar confiança aos pais. É pois com enorme satisfação que se lê no programa de governo a promessa de “Continuar a diferenciar os cuidados de saúde primários (...) oferecendo outras especialidades, como a ginecologia ou pediatria”. Sempre haverá necessidade de SU Hospitalares, mas é injusto que só aí se possa encontrar um pediatra no SNS para os filhos. Esse descongestionamento dos SU reduzirá a necessidade de médicos e permitirá que os serviços sejam mais atrativos para recuperar os recursos que lhes faltam.
4. Manutenção de SU em cada hospital. A curta distância entre SU com sobreposição de competências leva à multiplicação de equipas que faltam em quase todo o lado. A concentração de SU, com contribuição de todos os serviços na mesma região, tem provado ser eficaz e ter capacidade de resposta. É uma decisão difícil, que geralmente se faz contra resistências, por motivações várias. Essa solução vigora na região do Porto, com bom resultado, e sem agravamento de risco assistencial. É necessária liderança e autoridade, mas é possível. As soluções devem ser ajustadas a cada necessidade local, mas é errado assumir que uma única urgência terá a soma aritmética de todas que venham a ser encerradas. Há números que o demonstram!
5. Os mesmos métodos dão os mesmos resultados. Se nos limitarmos a recrutar mais médicos para tapar os buracos dos noticiários, mas não os assistenciais, só podemos esperar melhoria transitória até que novo sobressalto venha a mostrar que o “rei continua nu”. A notícia de que concursos com carácter urgente se mantêm despovoados sem candidatos mostra que deve ser trilhado outro caminho para conseguir resultados sensíveis.
6. A desvalorização da Pediatria como um problema antigo. A situação atual era evidente e previsível há anos. Foram equacionadas pelos pediatras soluções que não tiveram eco. A organização da Pediatria portuguesa data dos anos 80, sem atualização planeada. A complementaridade no atendimento das crianças nos diversos prestadores está desvirtuada e sem regulamentação clara. Propostas foram ignoradas e não foram valorizados os sinais de alerta. O mesmo acontece com a formação dos pediatras, que urge atualizar e adequar à realidade da sociedade.
Recordemos que se deve à pediatria o prestígio internacional do nosso Sistema Nacional de Saúde.
A presente crise e outras que circunstancialmente ocorreram nos últimos dias mostram que se deve olhar para os problemas de forma séria e despida de preconceitos corporativos. Os portugueses merecem cuidados de saúde sólidos para os seus filhos, na saúde e na doença, e já tarda a sua concretização. Ignorá-lo não pressagia nada de bom, será terrível ouvir alguém mais tarde dizer que é preciso começar a reorganizar os cuidados de saúde pediátricos, como se o mundo começasse então e sem ter lido os sinais que andam há muito no ar. Pediatras e membros da Direcção do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico