Limpar essa ganga
Pode um partido político, em representação (de uma parte) do povo, ver o seu propósito de “serviço ao bem comum” ser subvertido? Sim. Pode, sim.
Se não sabíamos, ficámos a saber. Num dos programas de referência do debate político televisivo, um dos notáveis comentadores afirmou, para quem esteja interessado em saber, que em Portugal: "Existe redes mafiosas, de tráfico de influência, ligadas a políticos e ex-políticos, que fazem negócios, que fazem pressões, que fazem ameaças, que envolvem gente do mundo da justiça, que envolvem gente do mundo dos jornais, que envolvem gente política.” – António Lobo Xavier, 23/10/2019.
Alguém que esteja de alguma forma ligado ao mundo da política, do jornalismo ou mesmo da justiça, não poderá ficar indiferente a esta afirmação. Em primeiro lugar, porque se trata de uma afirmação gravíssima. Em segundo lugar, porque vindo de um conselheiro de Estado, designado pelo Presidente da República, não pode tratar-se de uma afirmação vã ou extemporânea ou, como agora vulgarmente se diz, “populista”. Em terceiro lugar, porque, segundo este, a afirmação é válida para todos os partidos políticos, embora afectando a uns menos do que outros.
Pode um partido político, em representação (de uma parte) do povo, ver o seu propósito de “serviço ao bem comum” ser subvertido? Pode um partido político ser apropriado por um grupo de interesses ou pelos interesses de um grupo? Pode um partido político ser transformado numa central de negócios, na órbita do Estado, ainda que colocando em causa o interesse nacional? Pode um partido político tornar-se num branqueador de regimes corruptos ou autoritários? Pode um partido político ser transformado numa rica fonte de rendimentos para os seus dirigentes? Pode um partido político ser transformado num empregador de recurso ou numa agência de emprego público, para indivíduos sem actividade profissional conhecida? Entendamo-nos. Política não é profissão, é serviço.
Não tenho, na vida política activa, tempo de serviço comparável ao deste notável. Mas, em pouco tempo, pude intuir a resposta a todas estas perguntas. Sim. Pode, sim.
Um dia destes, ficaremos a saber que um qualquer partido, para resolver os seus problemas financeiros, procurou estabelecer relações com partidos-Estado, oferecendo-se como facilitador de negócios com o Estado português.
Um dia destes, ficaremos a saber que um qualquer partido, para resolver a precariedade profissional de alguns dos seus fiéis servidores ou caciques, com ou sem habilitações, conseguiu junto de empresas públicas generosos contratos de avença, por serviços não prestados.
Um dia destes, ficaremos a saber que num qualquer partido, perante alterações ou possíveis alterações de equilíbrios de poder interno, dirigentes seus corromperam ou tentaram corromper, subornaram ou tentaram subornar, coagiram ou tentaram coagir, para as impedir ou condicionar.
Um dia destes, ficaremos a saber que um qualquer partido, sem consultar os seus órgãos deliberativo e de fiscalização, alienou património imobiliário, em prejuízo próprio, e em benefício de terceiros, com convenientes ligações a dirigentes ou ex-dirigentes seus.
Um dia destes, ficaremos a saber que um qualquer partido, em violação das mais elementares regras de transparência, rigor e diligência, ocultou responsabilidades e sonegou informação relevante.
Um dia destes, ficaremos a saber que um presidente de um qualquer partido político, no exercício de funções parlamentares, acumulou o salário de deputado com uma remuneração paga pelo seu próprio partido, durante dois mandatos, excedendo até (pasme-se!) a remuneração do Presidente da República, base de cálculo para todos os salários de detentores de cargos políticos.
Um dia destes, saberemos. Mas só depois de “limparmos essa ganga”.