“Não ias compreender” é a última frase que ouvimos a Arthur Fleck no mais recente filme de Todd Philips, Joker. Num desfecho algo reconfortante, Fleck apresenta-se finalmente apaziguado perante a dúvida que desde sempre o perseguira. Não só descobre que existe, como percebe também que havia sido enganado de modo a pensar o contrário. Assume e diz “não ias compreender” — o seu mundo não é o do comum mortal. E aceita-o.
O controlo do discurso pelas estruturas de poder, e a sua relação com a verdade, é talvez o tema mais exaustivamente tratado por Michel Foucault. É através dessa lente que examina a história da loucura na cultura ocidental, o desenvolvimento dos seus significados e tratamentos. Não obstante as críticas justificadas que esse empreendimento mereceu, ele permite uma nova perspectiva da noção de loucura que revela a crueldade dissimulada com que os nossos tempos a tratam. Uma brutalidade que se encontra, em tensão, no centro de Joker.
O trabalho de Foucault revela que, na época medieval e até ao renascimento, os loucos eram vistos como portadores de uma certa sabedoria. O seu discurso, imperfeito e confuso, embora frequentemente marginalizado e maltratado, era no mínimo reconhecido como tal – um discurso. O advento do racionalismo iluminista, por sua vez marcado por uma definição rígida daquilo que conta como racional ou irracional, iniciaria um processo de confinamento e separação dos loucos do resto da sociedade. Processo esse que vê a sua continuidade nas sociedades contemporâneas – modernas, na terminologia de Foucault – através de um controlo do discurso cada vez mais feroz, que esgota definitivamente a possibilidade de uma linguagem comum entre loucos e sãos. Barricados em esferas incomunicáveis entre si, “o homem moderno já não comunica com o louco” por nele não encontrar qualquer verdade.
Em vez disso, vive no delírio de um sistema sem tempo para escutar, em sociedades nas quais a solução mais fácil é a melhor opção, em que o acompanhamento de pessoas com doenças mentais, dos pobres, de gentes vulneráveis – enfim, dos loucos – é visto como um luxo. O controlo do discurso pelas estruturas de poder condena os loucos a um estatuto de não-existência, através do seu silenciamento e invisibilização. E essa situação não traduz apenas um acto de crueldade para com o louco, como uma perda para a sociedade. Joker representa essa perda.
Arthur Fleck não se encontra fisicamente confinado a uma instituição clínica, mas o seu isolamento é palpável. Inconformado e inconformável, esforça-se por internalizar os códigos de uma sociedade que não lhe reconhece nenhuma verdade ou humanidade. Duvida, numa alucinação induzida, da sua própria existência e desconfia do seu riso. Por lhe exigir que “se comporte como se não tivesse uma doença mental”, o discurso hegemónico nega-lhe qualquer tipo de participação social porque o força a entrar num jogo de linguagem cujas regras desconhece. Aqui jaz a responsabilidade do Estado, e da sociedade, perante as atrocidades cometidas por Arthur Fleck e a consequente rebelião.
É que o louco não é, afinal, apenas o doente mental, mas todos aqueles que continuadamente vêem a sua voz silenciada e a sua dignidade ameaçada. De forma perturbadoramente lúcida, a narrativa desvela o modo como uma horda de “gente sã” encontra num louco a sua verdade. Uma lógica que vê a resistência ao controlo do discurso e à verdade dos poderosos como uma fatalidade e assim legitima uma nova moralidade. Mas num mundo em que a negligência, menosprezo e invisibilização da verdade louca dos desesperados é a norma, o sistema será o principal responsável por tais consequências. Entre a construção psicológica da personagem alegadamente apolítica de Arthur, e a afirmação progressiva de um clima de caos social, o clímax do filme dá-se no encontro dos dois arcos narrativos na figura de Joker e na sua descoberta foucaultiana: quem controla o discurso, e o riso, controla tudo. E finalmente alguém compreendia o seu.
O resultado é um brilhante estudo sobre a loucura, nascida de uma relação ambígua entre o psicológico e o social, e um retrato burlesco do actual clima de crescente contestação política. Quem lhe aponta como crítica o vazio ideológico do espírito de resistência aí celebrado não está longe da verdade, embora esqueça a primordialidade e potencial transformador do que é a insubordinação em bruto. Que Hollywood tenha a capacidade de absorver esse espírito, apropriando a representação dos movimentos de resistência ao mesmo sistema em que se inebria, deve recordar-nos da nossa permeabilidade à massificação do discurso, mantendo-nos alerta. A pergunta será perpétua: onde estão os loucos agora?