Catalunha: para além do bem e do mal

Para o bem de Barcelona, da Catalunha e de Espanha, convém lembrar a todas as partes envolvidas que somos responsáveis por aquilo que fazemos, pelo que não fazemos e pelo que impedimos de fazer.

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Jon Nazca/Reuters

Este artigo não foi escrito em defesa dos independentistas. Também não foi escrito em defesa de Espanha. Os argumentos foram pesados cuidadosamente porque este não é para mim um tema qualquer. Não pode ser porque vivi em Barcelona durante nove anos. Foi onde estudei e onde comecei a trabalhar. Foi onde aprendi a pensar e a escrever. Foi onde me ensinaram que o importante não é só escrever bem, mas escrever com responsabilidade. Por estas e outras razões pensei duas vezes antes de publicar este artigo. Pensei nas pessoas em Barcelona que vão concordar com os meus argumentos, e naquelas que me vão acusar de não entender o que significa ser espanhol ou catalão. Mas ao ler muitos dos artigos publicados neste jornal, nomeadamente o artigo do professor Pacheco Pereira, considerei que seria imperdoável não o fazer. Seria cómodo, mas não correcto, evitar um debate sobre o que está, e o que não está, a acontecer na Catalunha.

Gostava de começar por dizer que não sou a favor da independência da Catalunha, e que este artigo não pretende determinar se o direito à autodeterminação deve ou não ser reconhecido. O objectivo do mesmo é argumentar que uma saída política e negociada da crise que se vive na Catalunha depende também dos jornalistas e dos comentadores políticos. O objectivo da discussão pública é permitir aos cidadãos estar informados e determinar o valor dos argumentos em discussão. Tanto os cidadãos como os jornalistas têm direito à sua opinião. Mas estes últimos também têm uma série de obrigações, nomeadamente ser independentes. Não lhe é pedido que sejam objectivos, mas que o seu método o seja. Têm como missão ajudar os cidadãos a entender o que se está a passar e não contribuir para o agravamento da situação.

Como já devíamos saber os problemas políticos exigem soluções políticas. E como diz Daniel Innerarity, escolher os instrumentos errados para resolver um problema equivale a impossibilitar a sua solução. Comecemos então por lembrar que há mais de dois milhões de catalães que querem ser independentes e mais de três milhões que não querem. Que é importante reconhecer que a tribalização do conflito na Catalunha não tem uma única fonte nem um só responsável. Podemos reflectir sobre a decisão do Partido Popular de apresentar um recurso de inconstitucionalidade contra a reforma do Estatuto da Catalunha em 2006, cuja sentença quatro anos depois abriu as portas a uma crise territorial. E continuar com o aproveitamento da questão por parte de Artur Mas – então presidente da Generalitat – para paliar os efeitos da austeridade e da crise social e política que se vivia na região. Tanto as elites políticas em Madrid como as elites políticas catalãs apostaram pela confrontação para fazer frente aos casos de corrupção e aos custos eleitorais da crise económica, rejeitando qualquer tipo de diálogo.

Uma organização criada depois da crise, a Assembleia Nacional Catalã soube aproveitar o mal-estar criado pela sentença do Tribunal Constitucional, a precariedade e as manifestações contra a austeridade e canalizá-las num movimento a favor da independência, que ganhou forçar a partir de Setembro de 2012. A influência da mesma, o imobilismo de Madrid e a irresponsabilidade dos sucessivos presidentes da Generalitat geraram o caldo de cultivo necessário para a desobediência do parlament da Catalunha e para a celebração dum referendo ilegal no dia 1 de Outubro de 2017. A reacção violenta e desproporcionada por parte do governo de Mariano Rajoy motivou a declaração unilateral de independência, proclamada e rapidamente suspensa por Carles Puigdemont, e determinou a suspensão da autonomia da Catalunha e a prisão preventiva de vários líderes independentistas.

Na semana passada o Tribunal Supremo impôs penas de prisão aos líderes catalães que prepararam e executaram o referendo ilegal, dando como provado o crime de sedição e de desvio de fundos para grande parte dos acusados. As penas vão até aos 13 anos, e apesar de poderem vir a cumprir a pena em regime semiaberto, trata-se duma sentença dura e excessiva.

A mesma pode criar também um precedente inquietante, uma vez que uma interpretação expansiva do delito de sedição poderia vir a ser utilizada para criminalizar aquelas manifestações que se considerem que violam a ordem pública. Esta decisão não põe em causa a separação de poderes em Espanha, nem a robustez da sua democracia, mas sim a interpretação que os juízes do Tribunal Supremo fizeram da lei, abrindo o debate sobre a vigência de uma norma deste calibre no ordenamento jurídico duma democracia moderna.

A onda de indignação que se se seguiu à sentença não foi uma surpresa. Esperava-se uma reacção energética por parte do independentismo, apesar das divisões entre os dois principais partidos, a ERC e o Juntos pela Catalunha. Os protestos começaram no aeroporto, seguiram-se os cortes de estrada e a paralisação dos transportes públicos. Mas o que poucos pensaram que fosse possível aconteceu. Algumas manifestações tornaram-se violentas em diversas cidades catalãs, incluindo Barcelona. Não foi a primeira vez que aconteceu, mas foi a primeira vez que ficou patente a incapacidade dos líderes e organizações independentistas para controlar os cidadãos: sucederam-se confrontos no Passeig de Grácia, distúrbios à frente da delegação do Governo, confrontos na Via Laietana e na Praça Urquinaona. O número de feridos demonstrou que, para alguns independentistas, existem alternativas à desobediência pacífica.

A situação acalmou nos últimos dias, mas podemos dizer que estamos perante uma crise constitucional sem fim à vista. Dum lado, os nacionalistas catalães tentam forçar o governo de Madrid a reagir de forma exagerada para internacionalizar o conflito. Do outro, os nacionalistas espanhóis comandos pelo Partido Popular e pelo Ciudadanos, secundados ainda mais à direita pela Vox, estão à procura de desculpas para voltar a suspender a autonomia da Catalunha. No meio, o governo de Pedro Sánchez, a braços com um presidente da Generalitat irresponsável, uma oposição que promete um choque de nacionalismos e umas eleições cujo resultado é imprevisível.

Construir pontes entre Barcelona e Madrid não vai ser fácil. Seria preciso, em primeiro lugar, que o presidente da Generalitat governasse para todos os catalães. Quim Torra deixou bem claro, ainda antes de assumir funções, que existem cidadãos de primeira e de segunda na Catalunha. Do lado de Espanha, Pedro Sánchez encontra-se numa posição frágil e o mais provável é que evite tomar qualquer tipo de decisão até às eleições de dia 10 de Novembro. Contudo, a solução passa por estabelecer uma linha de diálogo e normalizar as relações institucionais quanto antes, esperando que de dentro do movimento independentista surjam líderes capazes de antepor a segurança e os direitos de todos os catalães à “liberdade” da Catalunha, e que o próximo governo de Espanha disponha da legitimidade e estabilidade suficientes para encontrar uma solução negociada para um conflito que não pode ser resolvido por nenhum tribunal.

Para o bem de Barcelona, da Catalunha e de Espanha, convém lembrar a todas as partes envolvidas que somos responsáveis por aquilo que fazemos, pelo que não fazemos e pelo que impedimos de fazer. Como disse José Ortega y Gasset, “muchos hombres, cómo los niños, quieren una cosa, pero no sus consecuencias”. Espera-se neste momento de máxima tensão que os líderes em Madrid e Barcelona sejam capazes de construir pontes em vez de cortar estradas. E que os comentadores políticos, deste lado e do outro da península, sejam capazes de antepor os factos e a responsabilidade às narrativas simplistas que dividem o mundo entre bons e maus. 

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