A insustentável leveza do municipalismo cultural

É a uma câmara que cabe a função de promover, por exemplo, um Festival Transcultural? Ou, pelo contrário, a sua função deve ser a de gerar políticas, ferramentas e condições de produção para que os actores sociais, designadamente minorias, construam um projecto participado e sustentado?

Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural.
A política, sempre que quer dirigir a cultura, engana-se.
Pois o dirigismo é uma forma de anticultura e toda a anticultura é reacionária.
(Sophia de Mello Breyner, Assembleia Constituinte de 1975-1976)

Em Portugal vive-se um momento paradoxal e perigoso, as políticas existentes no domínio da cultura são insuficientes para lidar com a complexidade e as ameaças do mundo contemporâneo. Políticas essencialmente focadas no acesso a objectos culturais legitimados, em vez de num entendimento da cultura(s) como processo contínuo de individuação. Vive-se numa época em que o poder se disfarça de incompetência, levando à degradação do Estado de direito democrático.

Por um lado, as práticas culturais urbanas encontram-se condicionadas pela mentalidade típica de uma governação disciplinar que perdura enquanto arquétipo do caciquismo municipalista português. Por outro, através da influência da globalização neoliberal, as cidades – ecossistemas culturais e criativos por excelência – vêm sendo subjugadas ao capitalismo financeiro. Consequentemente, a cidade transformou-se em mercadoria útil para o turismo e a gentrificação, espaço de especulação imobiliária, factor de competição territorial, imagem de marca estereotipada e facilitadora da homogeneização dos estilos de vida.

O protagonismo que hoje a instrumentalização do fenómeno cultural ocupa na engrenagem deste dispositivo municipal parece-nos evidente. Apesar de ainda pouco debatido entre nós, sabe-se que a verdadeira autoridade precisa da cultura como meio de interiorização de mecanismos de subserviência, pois nenhum poder político sobrevive satisfatoriamente através da pura coerção. É na própria subjectividade humana, com toda a sua aparente liberdade e privacidade, que o poder procurar deixar a sua marca consensual.

A sensação de se viver hoje num dos municípios portugueses – salvo excepções – é a de se estar imerso num imenso aquário cuja água se vem turvando à medida que os autarcas se apoderam impunemente, e à revelia da Constituição da República Portuguesa (CRP), de meios e recursos públicos que deveriam ser colocados estrategicamente ao dispor da produção cultural originada pela sociedade civil. Diríamos então, cinematograficamente, que esta Matrix Municipal faz parte de um sistema de homogeneização dos territórios e da manutenção de uma supremacia produtora de cidades anestesiadas.

Comecemos pela questão jurídica do direito fundamental à cultura. Um dos princípios basilares de um Estado democrático e de direito é o da garantia do pluralismo e da liberdade cultural, o que obriga à colaboração do Estado em duas vertentes: i) através do “direito negativo” que impõem um travão ao furor histórico fascista de criação de uma Cultura oficial, proibindo ao Estado (Artigo 43.º, CRP) programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas; ii) através do “direito positivo” que obriga o Estado, em colaboração com os agentes culturais, a incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural (Artigo 78.º CRP).

Se o poder local (municípios) goza plenamente dos princípios de subsidiariedade e de autonomia consagrados após a revolução de Abril, não se compreende como 45 anos de democracia – e 51 após o Maio de 68 – não foram ainda suficientes para as câmaras municipais agirem democrática e eficazmente no âmbito da CRP. O hábito está enraizado ao ponto de tornar diminuta a discussão pública dos efeitos nefastos do protagonismo municipal na vitalidade cultural dos territórios, na sustentabilidade, na autodeterminação e independência crítica dos agentes, na diversidade e no desenvolvimento do tecido cultural dos municípios. A insustentável leveza do municipalismo cultural é afinal essa falsa realidade social criada pela vontade de sobrepor um ideal estético kitsch (Milan Kundera) ao pluralismo das formas artísticas e socioculturais, renegando assim o pluralismo e a produção alternativa de um novo regime ético do viver em comum.

A atribuição de um “Prémio de Melhor Programação Cultural Autárquica” pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), e da sua divulgação acrítica em meios que proclamam defender os “valores de Abril”, representa o cúmulo da extensa e paradoxal naturalização de um padrão de governação em tudo contrário ao direito fundamental à cultura, que, como vimos, proíbe explicitamente ao Estado programar a cultura. Se proíbe, como pode uma instituição de defesa dos direitos culturais (SPA) premiar uma inconstitucionalidade? É a uma câmara que cabe a função de promover (organizar, programar e produzir), p.ex., um Festival Transcultural? Ou, pelo contrário, a sua função deve ser a de gerar políticas, ferramentas e condições de produção para que os actores sociais, designadamente minorias, construam um projecto participado e sustentado?

Na pior das hipóteses, o resultado do “Municipalismo Cultural” é o de um conformismo pluralista, no qual a lógica do poder (monolítica e coerciva) é reproduzida pelos agentes culturais, colaborando estes – por medo ou receio de perder a confiança dos eleitos – na sua difusão acrítica. Este municipalismo monstruoso pode então ser entendido como uma espécie de colonialismo cultural, pois ao mesmo tempo que satura as localidades com padrões culturais arbitrários e ilegítimos, destrói os ecossistemas de cultura na sua biodiversidade social. A diferença para com os colonialismos pré-modernos é que esses também liquidavam fisicamente as comunidades autóctones.

A proibição expressa pelo Artigo 43.º da CRP tem, devia ter, diversos efeitos pragmáticos, designadamente na implementação de uma política fundada no principio do arm's lenght, o qual impede que o poder político participe em processos de apreciação estética. Este princípio, usado em países democraticamente avançados, serve para proteger a independência dos criadores da possível influência dos governantes. Porém, na realidade municipal portuguesa isso infelizmente não acontece, sendo notório o padrão oposto de intromissão política e ideológica nas práticas e nos processos culturais. A presença de vereadores da Cultura em comissões de apreciação (júri) em concursos públicos de apoio à criação artística é de lamentar, mas acontece, por exemplo em Torres Vedras (Art.º 5.º).

A defesa intransigente, e constitucionalmente óbvia, da autonomia e da liberdade de programação dos equipamentos culturais, apesar das inúmeras reflexões sobre o assunto e da publicação de manuais de “Boas Práticas de Programação e Gestão de Teatros Municipais” (2010, REDE – Associação de Estruturas Para a Dança Contemporânea), é ainda hoje largamente desprezada com a constante ingerência do poder executivo na definição das programações de museus, teatros ou galerias. Observando, e escutando, o que se passa nos municípios, fica-se com a ideia de que os presidentes de câmara e vereadores são como príncipes da cultura e os cidadãos seus subalternos, restando-lhe participar com deferência naquilo que são as “palavras de ordem” e nos horizontes culturais diminuídos. Mais uma vez o desprezo da soberania do povo: o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade!

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Lauren Bon and the Metabolic Studio (2008) DR

Veja-se o caso recente (2018) da vereadora da Cultura de Santarém, que defende de forma pública e veemente uma programação menos “alternativa” para o Teatro Sá da Bandeira (TSB), sentindo-se chocada com uma peça de teatro em que surgia uma actriz nua em palco a dizer palavrões. Este episódio levou à demissão do programador Pedro Barreiro contratado para assumir a direcção artística do TSB. A formulação sintética com que Pedro Barreiro descreve os acontecimentos numa entrevista bem pode ser aplicada sintomaticamente a muitos outros municípios:

“Em Santarém é o caciquismo absoluto, as coisas funcionam em lógicas permanentemente eleitoralistas, altamente populistas, de fomentar a mediocridade em toda a linha, não existe nem visão, nem estratégia, nem pensamento decente. São coisas muito graves e que devem ser combatidas por todas as pessoas que tenham acesso a essas informações e que se queiram chatear.”

No município da Guarda algo similar aconteceu com a demissão de Américo Rodrigues das funções de director artístico do Teatro Municipal; neste caso também o presidente de câmara (Álvaro Amaro) achou que devia castigar a liberdade de expressão e as opções estéticas de um programador cultural que tem, como qualquer cidadão, o direito a publicitar livremente a sua opinião sem ser alvo de represálias. Em Sesimbra, Pedro Martins, num artigo do Jornal Raio de Luz (Agosto, 2017), dizia que “tudo o que se encontre à margem da esfera municipal e se não conforme com os seus ditames ou os seus desígnios corre o sério risco de esbarrar no silêncio, na inércia, na má vontade ou até na incompetência da câmara”.

A história do municipalismo português evidencia a governação absolutista protagonizada pelos “césares locais” a que temos sido sujeitos durante séculos. Em 1910, já o futuro Presidente da República, António José de Almeida, proclamava que “o caciquismo não é um acessório do regímen. É o próprio regímen. Ou, pelo menos, está para o regímen como o coração está para o organismo em que bate: é o aparelho distribuidor da energia e da acção” (Alma Nacional, n.° 28, de 18 de Agosto de 1910).

A obra de Henriques Félix Nogueira, O Município no Século XIX (Ulmeiro, 1953), descreve a passagem do absolutismo monárquico para a democracia municipalista. A burguesia, apesar de ser a classe herdeira do poder acumulado pela monarquia, “não quizeram prescindir d'esta arma terrível, e dar às povoações oprimidas e decadentes a vida própria que lhes faltava. Os resultados de semelhante política são, em toda a parte, funestos” (grafia original, p.11).

Boaventura de Sousa Santos, em 2002, questionava o pós 25 de Abril como época em que as autarquias locais foram investidas das mais ambiciosas expectativas democráticas:

“Esperava-se que, ao nível das autarquias, o exercício do poder político fosse mais próximo dos cidadãos e mais participado por estes, constituindo assim um cadinho de vivências democráticas fortes onde se geraria uma cultura política de cidadania activa capaz de neutralizar a cultura de submissão e de autoritarismo prevalecente até então no país (…). Ao centralismo da administração central acabou por corresponder o centralismo da administração local, o chamado “cesarismo local”. Daí o paradoxo do poder local no nosso país: presidentes de câmara fortes coexistem com um poder local fraco.”

Num artigo publicado em Fevereiro de 2019, António Pinto Ribeiro afirma, com inequívoco conhecimento, que “uma das constantes em muitos teatros e cineteatros do país, independentemente do tamanho das cidades e da cor política dos seus autarcas, é estes servirem fundamentalmente de equipamentos eleitoralistas”.

Nas nossas cidades, ainda hoje, como descreve Maria de Lourdes Lima dos Santos, “a pessoalização do poder acentua-se, agindo os eleitos em função de lógicas carismático-demagógicas, clientelares e partidárias, prevalecendo, por isso, uma visão paternalista” (As Políticas Culturais em Portugal, 1998: 178).

Poderíamos multiplicar a citação deste género de testemunhos, de experiências na primeira pessoa ou de conversas privadas mantidas com agentes culturais de muitos municípios, para verificarmos a plena sintonia existente entre a realidade concreta e a análise sociológica. O “caciquismo cultural” não é tampouco uma intuição subjectiva, é de facto um grave problema histórico, estrutural e estruturante, na vida dos municípios portugueses, e que supostamente deveria ter desaparecido há muito da nossa esfera pública democrática.

Quatro décadas após a instauração da democracia, estamos ainda no grau zero da cultura política autárquica no que à dimensão cultural diz respeito. A ausência de uma dimensão participativa sistemática e regular na gestão das cidades tem levado à persistência de um consenso operacional produzido e controlado pelas instâncias de governação.

Através de um prisma retórico poderíamos entender a razão de existência do fenómeno “municipalismo cultural” e aceitá-lo enquanto estratégia para lidar com as pressões da globalização, da sociedade em rede, e dos seus efeitos disruptivos nos estilos de vida das sociedades contemporâneas. Contudo, rapidamente concluiríamos que se tratava de uma estratégia ineficaz e prejudicial às dinâmicas e à resiliência dos sistemas sociais reticulares. Se optarmos por enquadrar o fenómeno sob outro prisma, poderíamos observar in loco a existência de um dispositivo artificial (não orgânico) de produção estratégica de hegemonias governativas no território.

Neste contexto, a instrumentalização da cultura para fins eleitoralistas equivale àquilo que Kundera designava como kitsch político. Esse “poder absorvente” enraizado nas cidades portuguesas contemporâneas aparece como uma espécie de novo totalitarismo kitsch (monocultura disfarçada de pluralismo), esvaziando a dimensão cultural de todos os conteúdos antagónicos e críticos da insustentável leveza do municipalismo cultural. Na realidade todos conhecemos municípios onde o executivo municipal se manifesta como instância de condicionamento e estagnação, abdicando do seu papel de facilitador de uma sociedade civil emancipada e plural.

Que estratégias e mobilizações adoptar para a construção de novas estruturas e instituições democráticas? Que iniciativas são necessárias para a revitalização das energias cívicas tendencialmente recalcadas por lógicas de dominação e reprodução presentes nas sociedades contemporâneas? Como promover e fortalecer as novas exigências de participação democrática?

Numa perspectiva centrada nas possibilidades participativas das pessoas, e da emancipação da sua condição de meros consumidores para produtores das suas próprias práticas culturais, é urgente propiciar instituições culturais mobilizadoras de sentido e entusiasmo colectivo, geradoras de energia cultural e de vidas com maior qualidade intrínseca. Não se trata pois de “satisfazer necessidades” de consumidores zombificados, mas de estimular as condições necessárias para que os cidadãos e as cidadãs possam criar e gerir as suas próprias necessidades, ou melhor, os seus desejos, na dimensão sociocultural, mas também económica e ambiental, das suas vidas.

As autarquias locais devem assumir um papel catalisador das forças sociais da comunidade, para que as mesmas tenham uma participação activa. E para tal será necessário, por um lado, criar espaços de debate, crítica e criatividade, onde os problemas locais sejam analisados com base no contributo e na experiência dos vários intervenientes.

Não podemos exigir hoje menos do que uma política cultural fundamentada no direito universal e como bem comum, que antes de mais parta do reconhecimento da sua dimensão política, isto é, da convicção de que a transformação cultural está intimamente ligada à transformação do político. Urge, por isso, favorecer a emergência de cidades inquietas, abertas às propostas da sociedade civil, nomeadamente dos mais jovens, dotadas de serviços públicos proactivos e dialogantes com as exigências, as propostas e as críticas da cidadania. Isto pressupõe, obviamente, um entendimento relacional da distribuição do poder, em vez de uma mera acumulação indefinida cujo paroxismo seria a encarnação do absolutismo.

Neste contexto, a arte e a cultura partilham com a política a capacidade de ampliar os horizonte de possibilidade, permitem-nos construir, enquanto comunidade, um presente concreto para imaginar um futuro que não nos poderá ser roubado. A cultura, enquanto matéria de política pública, deve então ser entendida como capacidade activa de cidadania, ou seja, como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais que os elementos de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa do mundo contemporâneo e para elaborar novas estratégias de vida colectiva. Ou, como diz Toni Puig, um conhecido livre pensador catalão: As cidades e um mundo melhor construiremos nós, os cidadãos. Acabou-se a submissão!

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