Abstenção: e quem decidiu não decidir?
Outra possibilidade seria dar uma voz aos votos em branco, contabilizando-os em lugares vazios no Parlamento, desde que respeitado o número mínimo de 180 deputados previsto no artigo 148.º da Constituição.
Em Portugal, os valores da abstenção nos atos eleitorais têm disparado, com exceção das eleições para o poder local (cujo declínio tem sido mais mitigado). Se atentarmos às eleições legislativas, em 1975, a taxa de abstenção era de 8,3%; em 2015, de 44,2%; e, em 2019, de 45,6%.
Ainda que seja verdade que a participação cívica não se esgota no voto, a questão permanece: Como pode uma democracia saudável coexistir com uma participação eleitoral diminuta? O que significa uma vivência plena da cidadania?
Vale a pena atendermos a algumas ideias-chave:
1. O fenómeno da abstenção, mote de apressados lamentos pré e pós-eleitorais, carecia de um estudo aprofundado e consistente. Com este intuito, em outubro do ano passado, o Portugal Talks: Retrato da Abstenção reuniu especialistas nacionais e internacionais na temática da abstenção e abordou-a numa perspetiva interdisciplinar.
Se a abstenção está estudada, o passo seguinte será: Como a combater eficazmente? Será necessária a via radical da introdução de um dever jurídico de votar? Uma tal institucionalização do voto obrigatório implicaria uma revisão constitucional? Se, pelo contrário, for suficiente a via legislativa, seria uma restrição legítima dos direitos, liberdades e garantias dos portugueses?
2. Convém lembrar que, aquando da aprovação da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (1979), o PSD e o CDS apresentaram projetos de lei que instituíam a obrigatoriedade legal do voto, associando uma sanção pecuniária ao seu incumprimento, tendo ambos os projetos sido reprovados devido à oposição do PS e do PCP. Como afirmou então Vital Moreira, o voto obrigatório visava “compensar a sua [dos partidos proponentes] falta de capacidade de mobilização e de consciencialização através da arreata e através da lei” (Cancela/Vicente, Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal: Diagnóstico e Hipóteses de Reforma, 2019).
A introdução de um voto obrigatório tem sido invocada por muitos como uma espécie de solução mágica ou mítica força salvífica, ainda que os partidos com representação parlamentar não tenham feito qualquer proposta neste sentido em sede de revisão constitucional.
3. Não me parece que a imposição do voto obrigatório seja um mal em si mesmo e concedo que, no limite e por períodos temporais devidamente balizados, poder-se-á revelar necessária. É uma solução desejável? Não. Sob pena de distorções à liberdade, dever-se-á implementar apenas como ultima ratio, quando outras medidas menos gravosas não surtirem os efeitos necessários.
Ao fim de 44 anos de consolidação democrática, de eleições livres e inclusivas, fará sentido a institucionalização do voto obrigatório em Portugal? Num contexto penal e contra-ordenacional de “mão leve”, será de esperar que a sanção para o incumprimento do dever de votar seja significativa? E a ser assim, impor-se um voto obrigatório com uma sanção pouco exigente não será uma mera operação de cosmética?
Como já escrevi, “a participação à força pode certamente disfarçar o sintoma mais visível da alienação política – o absentismo – mas não me parece que consiga contornar a doença que é o desencanto com a política enquanto processo, nem sequer atiçar a consciência política dos eleitores.”
4. O problema da abstenção é a dificuldade em avaliar o que lhe subjaz. Ela tanto pode ser o resultado de uma total indiferença pelo fenómeno político, de uma impossibilidade prática de votar, como de uma decisão ponderada e consciente de não votar.
No fundo, a abstenção, goste-se ou não, nem sempre é o resultado de uma não-decisão. O eleitor pode pura e simplesmente decidir não decidir, isto é, manifestar o seu julgamento (logo, decidindo) no sentido de remeter a condução da política do Estado ao movimento pendular das forças políticas que se apresentaram a eleições. Mas o que poderá justificar a decisão de não decidir?
A decisão de não decidir (e, portanto, não votar) pode assumir diferentes contornos. Pela negativa, pode pura e simplesmente significar que o eleitor não se identifica com nenhuma das alternativas políticas disponíveis, quer por não acreditar nos respetivos programas eleitorais, quer por entender que a execução de qualquer um desses programas padecerá de vícios entranhados no sistema político (corrupção, endogamia política, etc.).
Pela positiva, pode expressar que qualquer uma das alternativas políticas será capaz de prosseguir níveis satisfatórios de proteção social e de bem-estar. Com efeito, uma vez que Portugal pertence à União Europeia e aderiu a múltiplas organizações internacionais, existem standards mínimos de proteção de direitos humanos, de liberdade, justiça, segurança e paz que qualquer uma das opções eleitorais, independentemente da sua marca ideológica, terá de respeitar.
5. Podemos não concordar com esta leitura de um abstencionista consciente. Podemos entender que o eleitor deveria então votar em branco e manifestar assim o seu “protesto”. Podemos até criticar este comportamento abstencionista e catalogá-lo como um ‘quem cala consente’, que depois peca em legitimidade para responsabilizar os governantes pelas suas ações e omissões.
Contudo, a participação do cidadão na vida pública do Estado é um exercício de liberdade, que dificilmente se coaduna com uma imposição, cujo incumprimento geraria sanções jurídicas. Seja como for, a implementar-se num futuro o voto obrigatório, será de equacionar a possibilidade de prever expressamente o estatuto de objetor de consciência, em moldes semelhantes àquele que existe na Austrália.
6. Uma via intermédia de combater a abstenção – e menos lesiva para a autodeterminação dos cidadãos – seria a reforma do sistema eleitoral português, no sentido de um maior grau de personalização, que permitisse efetivamente reduzir a distância entre eleitores e eleitos. Por outro lado, outra solução poderia ser o voto remoto via Internet. Concomitantemente, poder-se-iam promover fenómenos de democracia direta (por exemplo, reduzindo as exigências constitucionais do referendo) para atenuar o peso da democracia representativa.
E o que pensar de medidas menos ambiciosas e que facilitem e simplifiquem o ato de votar? Entre elas estaria o aumento do número de dias da eleição, a realização de vários atos eleitorais no mesmo dia, o alargamento do voto antecipado (que foi já introduzido este ano, mas com alguns percalços) a um voto antecipado e em mobilidade, que permita ao eleitor votar em qualquer mesa do respetivo círculo eleitoral, ou até o alargamento do voto postal. Um incentivo que poderia ser interessante seria introduzir um prémio pecuniário na forma de incentivo fiscal no ano eleições.
Outra possibilidade seria dar uma voz aos votos em branco, contabilizando-os em lugares vazios no Parlamento, desde que respeitado o número mínimo de 180 deputados previsto no artigo 148.º da Constituição. No boletim de voto surgiria, portanto, a opção de votar em branco, sendo estes votos convertidos diretamente em cadeiras vazias. Esta possibilidade tem merecido alguma atenção, até no contexto das últimas eleições legislativas, em que a percentagem de votos em branco foi de 2,55%. Não obstante ser uma medida promissora, a verdade é que não foi ainda legalmente implementada em nenhum país, tendo somente sido utilizada por certos movimentos políticos (em França, em Itália, ou no Canadá), que avançaram para eleições com o compromisso de não assumir os eventuais lugares conquistados.