O mal-estar da Universidade
A precariedade não é uma questão suplementar; é o corolário de toda uma desqualificação da Universidade às mãos do neoliberalismo.
Num encontro de investigadores, promovido pelo centro de estudos a que pertenço (CEAU – FAUP), foi pedido que apresentássemos o conjunto dos nossos interesses e projectos de investigação. A este enunciado contrapus uma pergunta que visava interrogar as condições materiais e objectivas capazes de tornarem possíveis esses tais interesses e projectos de investigação. O carácter aparentemente inoportuno desta pergunta (como foi, aliás, apontado no dito encontro) é, na verdade, a sua oportunidade, porque ela dá conta, uma e outra vez, de um lugar invisível dentro da Universidade: o lugar daqueles que não têm lugar. Um lugar que é, hoje, uma ampla fractura que divide a Universidade e, simultaneamente, anuncia a Universidade do futuro. Quem não percebeu o impacto e a generalização da precariedade no funcionamento de uma Universidade cada vez mais desigual, ainda não percebeu nada.
Durante quatro anos fui Assistente Convidado na FAUP com um contrato a tempo parcial – como tantos outros docentes – com percentagens entre os 17% e os 21% e remunerações que variaram entre os 266€ e os 291€. Esta fortuna correspondia a três horas lectivas por semana, que incluíam a preparação de aulas e o acompanhamento de trabalhos, para além de todo um outro conjunto de tarefas. Três dias por semana eram geralmente dedicados a actividades lectivas. Posso dizer que se seguisse à risca os termos do contrato, jamais poderia ter exercido de forma competente a minha actividade docente.
A não renovação do contrato foi comunicada por carta sem qualquer contacto pessoal prévio. Quando inquiri os serviços da Faculdade sobre o direito à indemnização, foi-me avisado que isso não constava do contrato. E, no entanto, esta é uma obrigatoriedade definida por lei. Esta posição é grave, mas é apenas natural, porque os contratos a tempo parcial foram considerados ilegais pelo próprio MCTES, devido à fórmula de cálculo das percentagens de serviço. Devo, aliás, referir que é precisamente esta contabilidade das percentagens que me exclui de qualquer direito a um subsídio de desemprego, por não cumprir o número mínimo de horas de trabalho exigidas pela Segurança Social. Concluindo: quatro anos de docência numa instituição celebrada da UP, a receber 279€ mensais, sem direito a subsídio de desemprego e (aparentemente) sem indemnização.
Mas esta é a realidade de toda uma geração: a precarização dos Assistentes Convidados, dos Bolseiros, dos Investigadores. Aliciados pelas promessas dos ganhos futuros, iludem-se continuamente enquanto lubrificam as engrenagens da sua própria máquina de exploração, incorporando os mandamentos da nova Universidade Neoliberal em formato empresa: a competição, a produtividade, a inovação, o sentido de oportunidade para farejar o dinheiro aí onde ele nunca está. Estes são um imenso exército de reserva, sempre pronto a responder às necessidades e aos caprichos das Universidades: docentes contratados e dispensados ano após ano; investigadores que acabam a dar aulas gratuitamente; disparidade salarial gigantesca entre docentes que dão o mesmo número de horas e a mesma cadeira. Exige-se doutoramento aos Assistentes Convidados, mas sem oferecer qualquer estabilidade – há pessoas que pagaram mais em propinas de doutoramento do que receberam da Universidade em ordenados.
No caso específico da instituição que conheço, alguém há-de fazer o bestiário das medidas que se tomaram em nome da sustentabilidade financeira e que não fizeram mais do que a conduzir à penúria moral e intelectual. A história desta Faculdade é, aliás, o desperdício e a desvalorização das mentes mais brilhantes que já tive a oportunidade de conhecer.
A precariedade não é um momento passageiro, mas um modelo de relacionamento laboral e social em implementação. A promessa de uma vida empreendedora cheia de oportunidades maravilhosas acaba sempre em ansiedade, depressão e burnout. Estas são as doenças dos precários, como sabemos pelos inúmeros estudos realizados. À dificuldade natural de perseguir um projecto de investigação próprio, soma-se a ausência de estabilidade social, emocional e de futuro. A erosão do Estado Social é a erosão de uma geração que vive pior que os seus pais. E é a erosão da democracia enquanto promessa de ascensão social.
No entanto, a precariedade não traz apenas a desigualdade extrema para dentro da Universidade, ela reproduz um modelo cujo horizonte é a sua própria desqualificação. A autonomia da investigação não é senão uma miragem. Os critérios de avaliação da FCT exigem o retorno financeiro imediato dos projectos de investigação, tal como a Reitoria exige que as Faculdades recorram a receitas próprias e aos privados para garantir as condições básicas do seu funcionamento. A obsessão pelo financiamento privado não atravessa apenas a gestão corrente, ocupou de forma ambígua e problemática o ensino e a investigação: conferências e workshops realizados em nome de um conteúdo pedagógico ou científico revelam-se, frequentemente, acções de promoção de marcas. Iniciativas conduzidas cada vez mais à medida das oportunidades que surgem do que projectos consistentes. No entanto, a profissionalização da investigação corresponde à profissionalização de um ensino reduzido à aquisição de competências técnicas. As linguagens empresariais do empreendedorismo e do branding tomaram conta do quotidiano universitário, ao mesmo tempo que os processos de participação democrática foram depauperados. Os professores vendem produtos e os alunos são clientes, diz-se com orgulho, quando o que está em jogo é a sua mercantilização: os primeiros precarizados e os segundos endividados pelo peso da propina.
Os centros de investigação são laboratórios de experimentação de todos estes mecanismos de financiamento, de empresarialização e de proletarização absoluta de uma mão-de-obra altamente qualificada. A produção de conhecimento é uma indústria. O critério é a quantidade. As fraudes e a banalidade das acções multiplicam-se. É irónico e trágico ver a pinderiquice desses congressos, com catering gourmet e guarda-sóis na relva, contrastar com a precariedade que generalizam à sua volta, com a precariedade em que vivem os seus próprios organizadores.
Ora, chegamos tanto a um ponto de exaustão como de incompreensão mútua. Para nós, trata-se de uma questão de vida – uma vida que mereça a pena ser vivida. Enquanto que a indiferença do restante corpo docente não é senão o sintoma do fechamento progressivo do seu horizonte crítico: a aceitação tácita e silenciosa dos preceitos da Universidade Neoliberal é, afinal, a condição da sua própria sobrevivência.
A precariedade não é uma questão suplementar; é o corolário de toda uma desqualificação da Universidade. Aquilo que todos deveriam, por agora, já ter percebido é que o estrangulamento financeiro do Ensino Superior não é consequência da crise, mas um modo de governação. Governar através da crise significa: disseminar a exploração e a desigualdade na Universidade, privatizar os seus serviços e a sua dimensão pública, dirigi-la exclusivamente às necessidades do mercado e, finalmente, dissipar da Universidade toda a função crítica social que sempre lhe pertenceu. A Universidade não serve apenas para ensinar, nem para produzir conhecimento, mas tem uma função social fundamental enquanto espaço único a partir do qual se pode interpelar a sociedade. E é a dissolução desta condição que está em jogo e cuja aceitação, essa sim, terá um custo demasiado elevado.