Os estivadores e a família portuguesa
A exigência do Sindicato dos Estivadores de renunciar a qualquer tipo de propostas que incluíssem direitos para os mais velhos distintos dos mais novos é a grande marca estratégica deste sindicato. E nisso estão absolutamente sós no panorama sindical português.
Há um ano o País parava para assistir à “batalha de Setúbal", a greve dos estivadores à jorna do porto de Setúbal, que se continuasse ameaçava parar a Autoeuropa... De lá para cá assistimos a outros dois grandes conflitos, a greve dos enfermeiros e a de motoristas, de resultado incerto. Este mês foi anunciado o novo Contrato Coletivo de Trabalho para Setúbal e nem a Autoeuropa fechou nem o País caiu num precipício. No entanto, o salário base destes trabalhadores à jorna, depois da greve, passou para cima dos 1400 euros e 56 deles conquistaram um contrato fixo. E os restantes precários podem fazer um turno antes de os fixos realizarem horas extraordinárias.
Muitos sindicatos têm reclamado que a perda de direitos se deve à condição fragilizada dos trabalhadores precários. É um argumento pobre. Já que os sindicatos nasceram e cresceram tendo como padrão histórico o trabalho à jorna, à peça, incerto, etc. Na realidade, o emprego seguro é uma “anomalia” na história do capitalismo.
O pacto social da segurança do emprego vigorou entre 1945 e 1980 nos países centrais. A partir daí o recurso ao desemprego como principal regulador do preço da força de trabalho, que nunca cessou de existir, voltou em força.
Uma das diferenças entre o século XIX e o mundo pós-1980 é que os sindicatos tinham então, no século XIX, uma estratégia de conflito com os patrões, que privilegiava ações como as greves, ainda que ilegais, enquanto o Estado era mais frágil. Depois de 1980 os sindicatos continuaram a atuar com as regras do pacto social, dentro de uma lei que os protegia em parte, e em que o Estado teria um papel regulador entre patrões e trabalhadores. Os sindicatos tradicionais aceitaram a concertação social ou apoiam acordos formais sem resultados, negoceiam sem apoio das bases e patrocinam processos jurídicos morosos e dispendiosos, sem resultados. Isto é corresponsável não só por uma perda de direitos sociais mas por uma massiva dessindicalização – entre o final da década de 70 e hoje a percentagem de sindicalizados caiu de mais de 60% para menos de 20%.
Desde 2008 surgiram algumas rupturas importantes na CGTP e na UGT: no pessoal de voo, energia e águas, sector automóvel, professores, enfermeiros, motoristas. A “geringonça”, ao gorar as expectativas do mundo do trabalho mantendo o pior da legislação laboral da troika e da direita nacional, acelerou estas rupturas.
Todos estes sectores assistiram a um exemplo diferente neste período: o Sindicato dos Estivadores, SEAL. Que, ao contrário de outros sectores, tem somado vitórias, embora tímidas. Saliento tímidas porque, por exemplo, a média de horas de trabalho, num estudo coordenado por nós na FCSH, é de 60 horas semanais nos estivadores – uma brutalidade que os levará à doença e incapacidade. Porém, evitaram que o salário mínimo chegasse aos portos, quando chegou – depois da troika – a mais 400 mil portugueses do que anteriormente (sim, o desemprego caiu, mas o salário mínimo tem-se generalizado e os novos empregos criados têm salários abaixo da subsistência).
Um intenso debate divide os historiadores do trabalho sobre o que é determinante para o resultado das lutas sociais: se a condição objetiva dos trabalhadores, se a sua direção sindical. Inclino-me para uma resposta em que as duas se combinam, mas em que a direção sindical prevalece.
Os primeiros atribuem a perda de direitos ao “neoliberalismo”, ao fim da URSS e a uma desregulamentação estatal que tinha derrotado a resistência, o “Não há alternativa” de Thatcher. O facto é que na década de 80, antes da queda do Muro de Berlim, se criou o consenso de cortar salários, com compensações assistenciais. E os sindicatos aceitaram, “os pais entregaram os filhos”. Desenhou-se um quadro assente nas pré-reformas massivas (aliás, obrigatórias para Portugal aderir à então CEE) e na utilização da Segurança Social para enviar os trabalhadores que ganhavam mais para casa, substituindo-os por precários. Os precários não regrediram socialmente no imediato porque ganhavam o salário mínimo mas ficaram em casa dos pais a viver, a comer, a vestir. Assim, uma parte do salário não pago pelos patrões foi durante duas décadas pago pelas famílias, as tais que tinham conservado os direitos (ao suportar os filhos diminuíram os seus próprios consumos). Isto significou que o conflito tradicional da produção — patrão/trabalhador — passou para um conflito de base familiar. A família revelava-se um “Estado assistencial” – quando deveria ser uma comunidade de afectos. Este modelo entrou em rutura definitiva depois de 2008.
Um trabalhador precário ganha em média menos 40% do que um com direitos, o que significa que desconta para a Segurança Social um valor muito baixo. E é isto que destrói a sustentabilidade da Segurança Social – não é um problema demográfico.
Há anos que nos estudos do trabalho se desvaloriza o peso das lideranças e se valoriza o ambiente na produção. Justifica-se a força dos estivadores porque... são estivadores. Ora, esta explicação não explica (quase) nada. Os estivadores não são mais estratégicos do que a energia, a Autoeuropa, os camionistas, a saúde ou a educação – o País suportaria 38 dias de greve nas escolas como suportou nos portos? Não. A educação ou a saúde são capilares. O “ambiente” por si não explica as distintas práticas de sindicalismo. Compreender a história de cada sindicato e as suas lideranças políticas é fundamental. Os sindicatos têm membros de todos os partidos, mas a sua direção não é neutra. A forma como se conduz um protesto pode ser progressista ou conservadora – e isso é determinante para o seu sucesso. Foi o que aconteceu em Setúbal.
O SEAL tem uma direção progressista, ainda que não filiada partidariamente. Funcionam democraticamente em plenário, com fundos de greves, têm uma política de independência face aos governos e ao Estado, e são internacionalistas. Mas, sobretudo, têm uma estratégia quase única no País, em que não aceitam condições piores para os mais novos em troca de direitos exclusivos para os mais velhos. E em vez de se fecharem corporativamente, fazem pontes com outros sectores, ganhando o “coração” do público – o seu lema “Precariedade, nem para os estivadores nem para ninguém” é apanágio desta orientação. Esta clarividência não existiu na direcção de outros sectores em luta.
No SEAL os mais antigos solidarizaram-se com os mais novos, e os de Lisboa com os dos portos onde havia mais precariedade, fazendo greve e recolhendo fundos para os mais frágeis. É esta a razão de ser das suas vitórias. A reação foi, porém, imediata: os patrões de Lisboa têm sistematicamente praticado salários em atraso desde há um ano. E as queixas de assédio moral atingem quase 50% da força de trabalho, segundo o nosso estudo. Pese embora os lucros publicitados das concessões, não há qualquer ação do Ministério Público ou do Governo de penalização destas práticas.
O Governo de António Costa atuou com mão dura nas greves fora das centrais sindicais, mas deixou as causas que levaram a estas greves arrastarem-se até ao limite. Sem soluções para a vida destes homens e mulheres, lançou campanhas negras para derrotar direitos elementares de uma sociedade civilizada. Anos de falsas ajudas de custo nos motoristas, trabalho à jorna por 20 anos em Setúbal, turnos de 16 horas nos enfermeiros e agora salários em atraso no porto de Lisboa tiveram como resposta a inação governativa.
Tudo indica que este padrão vai permanecer. Governos de olhos fechados para a condição real das classes trabalhadoras, manuais ou intelectuais. E o novo sindicalismo a emergir neste quadro.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico