Nazaré: violência e a força de vender

Utilizar expressões como “mulher de força” vende. Numa falsa e mascarada tentativa de vencer contra os estereótipos de género, Nazaré – essa mulher de força – é abusiva, violenta e mal-educada, mas ninguém o quer dizer.

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Ana Antónia Bento/SIC

Acredito que a sociedade precisa de ver as mulheres como fortes em vez de frágeis. Iguais, em vez de inferiores. Anseio o momento em que a mulher deixe de ser a personagem secundária, mesmo em guiões em que é tida como protagonista, mas sem nunca o ser. A revolução social no que diz respeito ao género está cada vez mais presente e eu não poderia estar mais entusiasmada para ver os resultados em futuras gerações. Todavia, começo a achar que a vontade de mudança é tanta que as pessoas tropeçam em conceitos e acabam por baralhar tudo. O erro não está nesta sede que temos de igualdade, o erro está em não se colocar tempo e noção social quando se vai trabalhar com a imagem de género e o que esta representa.

Imaginem-se a ver uma série, novela ou filme. A personagem principal é um homem destemido, cheio de personalidade, sempre de cabeça erguida. Esse homem está numa relação. Cada vez que ela diz algo que ele não gosta, ele agarra-a pelo pescoço, ele empurra-a, ele aperta-lhe o braço, ele puxa-lhe o colarinho. Este homem, protagonista, apaixonou-se por outra personagem e quando a namorada descobriu, ele utilizou estratégias evidentes de manipulação. Ela ficou a sentir-se mal — além de desculpar a traição, ainda demonstrou sinais de culpa. Agora, quantos de vocês achariam que esta mulher era vítima de uma relação abusiva?

A SIC tem uma nova novela desde o início deste mês. Sempre achei que a TVI tinha uma agenda que não me fazia sentido. Mantive-me fiel à SIC desde sempre. Ansiei a estreia de Nazaré, mas ao fim de uma semana decidi que não me iria permitir desfrutar confortavelmente daquilo que me parecia o exemplo perfeito de agarrar na luta de género e fazê-la vender. Não que a novela tenha como foco ou narrativa uma agenda de revolução de género, mas garantidamente deixou-se levar na onda desses conceitos para se destacar.

Utilizar expressões como “mulher de força” vende. Numa falsa e mascarada tentativa de vencer contra os estereótipos de género, Nazaré – essa mulher de força – é abusiva, violenta e mal-educada, mas ninguém o quer dizer.

Estudei produção visual e audiovisual e estou a fazer mestrado em realização. Estes são alguns factores pelos quais me tornei mais atenta a técnicas utilizadas em vídeo para comercialização. A utilização de uma música dramática enquanto um homem agarra uma mulher faz-nos detestar ainda mais o comportamento agressivo dele. A utilização de música de suspense de cada vez que um homem utiliza manipulação e a mulher acaba por ser influenciada faz-nos detestar ainda mais a personalidade manipuladora. Curiosamente, nada disso é utilizado em Nazaré.

Nesta novela, de cada vez que ela aperta os testículos do namorado, de cada vez que ela lhe agarra pela camisa, de cada vez que ela é passivo-agressiva acabando por manipulá-lo, é utilizada uma estratégica fantástica de manipulação audiovisual: música light, q.b. de animada, muito caseira e confortável. A cena muda logo de figura para os espectadores — afinal não precisamos de estar contra aquele comportamento agressivo, afinal, com um cenário tão relaxado, até lhe achamos piada. Deixamos escapar e rimos.

Em nada esta protagonista representa, segundo as minhas definições, uma mulher de força. Em nada esta protagonista representa, segundo as minhas definições, um bonito exemplo para quebrar padrões de género. Para mim, esta protagonista representa aquilo que eu não quero numa relação, aquilo que me assusta na ideia de amor romântico, aquilo que evito ter por perto. Serve para mostrar como a luta das mulheres é invadida por capitalismo puro — não interessa o que fazemos, interessa se vendemos.

Existe a possibilidade de a novela levar uma reviravolta e representarem a Nazaré pelo que ela é — nesse caso, as minhas desculpas e os meus aplausos — mas algo me diz que isso não acontecerá. Talvez a coloquem a pedir desculpa ao namorado (“Epá, passou-se da cabeça”) e, dessa forma ligeira, o carácter abusivo dela acaba por sair de mansinho, dando lugar a uma Nazaré vítima.

Atenção, é importante existirem representações de mulheres agressivas, abusivas e manipuladoras, afinal de contas a violência contra homens não é um mito. O que não é importante é existir essa representação romantizada e tornarem a agressora num ícone de força e num role model. Atenção, é importante existirem representações de mulheres fortes, que anulam a ideia de mulher frágil e incapaz, afinal de contas os papéis de género são reais e a desigualdade é um facto. O que não é importante é fingirem essa ideia, não lhe darem a atenção merecida e acabarem por apoiar que uma mulher agressiva não é símbolo de violência, mas sim de garra.

A minha garra não passa por utilizar a força para me fazer ouvir, muito menos quando aquilo que tenho para dizer é manipulador e anula o que o outro sente. A minha consciência social não me permite ser relaxada ao ponto de agarrar numa lata de atum, desfigurá-la e depois trazê-la numa bandeja como se fosse um bife wellington cozinhado pelo Ramsay e esperar que todos comam e calem. Não importa a forma como se representa a violência — não deixa de ser violência.

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