Um novo valor para a microprodução renovável
Famílias e outros pequenos produtores poderão ser responsáveis por mais de 20% da produção de eletricidade. Mas para isso é preciso mudar o valor que se dá a cada tonelada de CO2. Com a energia renovável, o dióxido de carbono não é emitido, mas evitado.
No primeiro quadrimestre deste ano, a potência instalada pela pequena e micro geração de energia elétrica de fonte renovável em Portugal ultrapassou, pela primeira vez, o correspondente a um grupo gerador de uma central elétrica como as que operam no país — hídrica, a carvão ou a gás natural.
No fim de abril passado, a pequena produção renovável totalizava 335,5 MW de potência instalada, para uma produção de quase 480 mil MWh de energia elétrica e quase toda fotovoltaica (98,9%), segundo as Estatísticas Rápidas-Renováveis, abril 2019, da DGEG. Em termos de potência instalada, isto equivale a metade da barragem do Alto Lindoso, ou a metade da central a carvão do Pego, ou ainda a um terço da central a gás natural da Tapada do Outeiro.
A pequena geração renovável inclui as UPAC-Unidades de Produção para Autoconsumo, que produzem energia para consumo próprio no local, e as UPP-Unidades de Pequena Produção, que vendem à rede elétrica toda a energia que produzem. Estas últimas são “herdeiras” da micro e miniprodução que vêm dos regimes bonificados da década anterior. Os regimes de acesso para todo o conjunto variam consoante a potência instalada, podendo ter menos de 200W, mas também mais de 1 MW.
Face ao consumo nacional de eletricidade — 47 milhões de MWh, dos quais 55,2% de fonte renovável, em 2018 —, a produção conjunta das UPAC e UPP parece “pequena”: não chega a meio milhão de MWh. Mas a respetiva potência instalada aproxima-se da energia necessária para um aglomerado de 100 mil habitantes, como Setúbal, Viseu ou Barcelos.
Estes valores têm também significado face aos Gases com Efeito de Estufa (GEE) libertados para a atmosfera pela produção de energia elétrica necessária. A pegada do mix energético português varia ao longo do dia e do ano, num balanço entre recursos renováveis e fósseis. Por exemplo, a principal fonte da energia elétrica que se consumia às 8h00 do passado dia 19 de julho eram as centrais a gás natural e a carvão, com a consequente emissão de 419 g de dióxido de carbono (CO2), segundo os dados em tempo real do site electricityMap.
Em média, um kWh de energia elétrica produzido a partir do carvão gera cerca de 820 gCO2, se for gás natural em ciclo combinado rondará 490 gCO2, de acordo com os valores do IPCC (2014) estimados para todo o ciclo de vida de cada tecnologia. Já um kWh renovável contribui, nesta perspetiva, com 11 a 45 gCO2 — são zero emissões no momento de produção da energia. Em 2017, último ano com dados disponíveis, o sector elétrico foi responsável por 30% dos 70 milhões de toneladas de CO2 emitidos por Portugal.
Apesar de “micro” e “pequena”, esta produção é vista como crucial pela UE para cumprir as metas de descarbonização até 2050. Para a Comissão Europeia, a forte eletrificação da economia da UE baseada em energias renováveis, necessária para reduzir as emissões de CO2, levará a “um elevado grau de descentralização”, ou seja, a uma muito maior participação dos pequenos produtores. Bruxelas também quer reforçar a “noção da importância do contributo da acção individual, através das mudanças de comportamento e de estilo de vida.”
Portugal deverá publicar brevemente a legislação que transpõe as novas normas europeias, aprovadas no final de 2018 entre o Parlamento Europeu e o Conselho, que incentivam à produção de energia renovável descentralizada, tendo sido criadas figuras jurídicas como o autoconsumo coletivo e as comunidades de energia renovável. Representam, no texto da lei da UE, “comunidades de cidadãos para a energia”. São condomínios, grupos de autoconsumidores do mesmo edifício, apartamentos ou moradias vizinhos, unidades industriais e comerciais, pessoas coletivas com sócios ou acionistas que desenvolvem projetos de energia renovável.
As previsões do Governo alinham-se com as da CE quanto ao papel futuro dos produtores/consumidores, que ambos consideram “relevante”: as famílias e outros pequenos produtores poderão ser responsáveis por mais de 20% da produção total de eletricidade, especialmente de energia eólica e fotovoltaica.
Aprovada no final de 2018, a nova diretiva da UE determina a criação de regimes favoráveis ao desenvolvimento das comunidades, sem barreiras, não discriminatórios e inclusivos. Regimes que garantam às famílias vulneráveis iguais condições de acesso e estimulem a opção por comportamentos sustentáveis. O Acordo de Paris reconheceu que a luta do clima é de todos.
O FMI, o Banco Mundial e a Agência Internacional de Energia (AIE) têm abordado a necessidade de um preço mais real para o carbono que desincentive o consumo de combustíveis fósseis e acelere a descarbonização da economia mundial. O FMI, em particular, tem dado atenção ao facto de a inexistência deste preço corresponder, na prática, a uma subsidiação (vantagens escondidas) às energias fósseis.
Na cimeira especial do clima de dia 23 de setembro em Nova Iorque, o secretário-geral da ONU António Guterres quer mais ambição dos países nos seus compromissos para reduzir as emissões de CO2. E que isso empurre a economia mundial para um preço mais justo.
A montante de um preço adequado para as emissões está a noção do valor. As leis vigentes, especialmente em economias mais avançadas, valorizam as vantagens da energia renovável da pequena produção e penalizam os danos dos combustíveis fósseis, mas os preços não se diferenciam de forma tão óbvia.
O preço para o consumidor de uma tonelada de carvão, de petróleo ou de outro combustível fóssil não inclui de forma quantificada, tangível, todos os custos económicos, sociais e ambientais derivados do CO2 emitido. Nas últimas décadas, os mercados de licenças de emissões de dióxido de carbono e as taxas de carbono, que se afirmaram como instrumentos dissuasores de geração de emissões, tentaram sanar essa falta, mas apenas em parte.
Por outro lado, o preço para o consumidor de um MWh de energia eólica ou solar ou de outra fonte renovável não tem em conta todos os benefícios económicos, sociais e ambientais derivados do CO2 evitado, já não emitido.
Alocar à produção limpa a receita das penalizações a cobrar sobre a produção menos limpa criaria um incentivo ao investimento em centrais de produção de energia com origem em fontes renováveis. Permitiria igualmente que as tarifas por MWh fossem mais baixas, beneficiando todos os consumidores de energia. Mas não só. Este tempo pede políticas e mecanismos inovadores na valorização dos benefícios de cada quilograma de CO2 evitado e que façam chegar a transição energética às famílias, aos bairros e às comunidades locais.