Portugal, caderno de encargos
O problema criado na habitação é tão grande que as pessoas, sozinhas, não o conseguem resolver.
Apesar do alarido que a sua divulgação tem criado em redes e comunicação social, e das previsíveis dificuldades de implementação, o Programa de Arrendamento Acessível (PAA) revela-se útil, uma vez que da análise dos seus dados e regras podemos certificar que o acesso a uma habitação adequada é um problema em grande parte do território nacional. Este problema acentua-se gravemente em Lisboa e no Porto, e as dificuldades em aceder a um alojamento condigno ultrapassaram, “larguissimamente”, os segmentos sociais com menos recursos. Ou seja, o PAA conta já com três méritos: permite-nos passar de debater se há um problema de habitação para debater a sua dimensão; ajuda-nos a entender os elementos que estão a espoletar e estruturar o debate público; e aponta alguns caminhos úteis para ter o país que queremos.
Embora o descontentamento com o mercado de habitação seja justificado, convém canalizá-lo dentro de moldes que permitam atacar as causas que lhe subjazem e que afectam também os que neste filme nem falam nem são falados. Interessantemente, os mesmos dados que provam que só baixar 20% o valor do arrendamento não resolve o problema do alojamento nas grandes cidades também mostram que o PAA poderia atingir os seus objetivos num âmbito territorial bastante alargado — e que ainda não pode existir nesse interior do país onde, para além de quase tudo, faltam até os dados do INE que permitiriam implementá-lo. As manifestações e ausências do PAA, tanto no território como no debate público, espelham a realidade de um país heterogeneamente colado a uma desigual distribuição de recursos, serviços públicos, infraestruturas e um longo etcétera. Uma doença sistémica que só se cura com políticas públicas assertivas, estratégicas, integradas e territorializadas.
O problema criado na habitação é tão grande que as pessoas, sozinhas, não o conseguem resolver. E as suas causas são tão profundas que sem uma ação que aborde, em todos os territórios, o acesso assimétrico aos bens e ferramentas seremos incapazes de resolver sequer o único problema que emergiu com força (o alojamento das classes médias em duas cidades). Isto não é fácil nem será imediato, porque, em habitação, vimos da tempestade perfeita. Parte relevante do atual quadro legislativo e financeiro foi criado durante a crise, com o intuito de ativar o mercado imobiliário para reanimar a economia, beneficiando quem entende que a habitação não é direito mas privilégio. Para corrigir isto, o caderno de encargos é claro: precisamos que o poder público recupere o espaço cedido às minorias económicas e o colmate com ferramentas que garantam que as instituições servem indubitavelmente os cidadãos.
Será importante, por isso, não tomar a parte pelo todo. Nem o país se resume a duas cidades, nem as ferramentas de que dispomos se cingem ao PAA. Sem entrar ainda nas possibilidades da lei de bases, falta dar tempo e meios à Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) para perceber se é capaz de pôr o Estado, do presidente da junta ao Presidente da República, a fazer da habitação um terreno de batalha onde valha a pena lutar (mas não uns contra os outros). O primeiro passo será articular os instrumentos previstos na NGPH com os agentes no terreno, uma miríade de atores (proprietários, inquilinos, IPSS, cooperativas, associações de moradores, etc.) que poderiam fazer parte da solução, se conhecessem as ferramentas de que dispõem para criar habitação a custo justo, as percebessem e tivessem capacidade de as utilizar em benefício do país real.
O segundo passo tem que ver com o espírito que subjaz à NGPH. Para “territorializar” as soluções segundo um “modelo de governança multinível, integrado e participativo” será imprescindível uma segunda articulação, desta vez, com os vários níveis da administração pública. Tudo o que se possa melhorar no Ministério e na Secretaria de Estado de Habitação terá mais impacto a partir de uma ação conjunta com outras áreas de governo (mais Orçamento do Estado para habitação, mais habitação pública, menos facilidades para a iniciativa privada predadora, melhores políticas de mobilidade ou emprego) e com o poder municipal (estratégias locais de habitação e outras iniciativas valiosas das autarquias).
Mas nada disto acontecerá, se não percebemos que o alarido cidadão, embora pareça desafinado, responde a razões reais, e que uma das obrigações mais difíceis de quem quer fazer acontecer é, como uma vez me disse Helena Roseta, conseguir a harmonia dos elementos dissonantes.