O transe e o cisma: aquém e além de sanitas e urinóis
A política em torno da autodeterminação de género tem revelado, em Portugal e noutros países, o estado de transe da esquerda progressista e o cisma da direita conservadora, num debate em que os factos vão sendo atropelados pelas convicções.
Ainda a propósito de casas de banho, lembrei-me que uma das teses para divertir plateias do filósofo Slavoj Žižek é sobre o modo como os diferentes povos contemplam as suas matérias fecais, mas como o polémico despacho 7247/2019 que regula a transição social de crianças e jovens transgénero (trans) nas escolas portuguesas não revelou nenhuma idiossincrasia lusitana, resolvi alargar o espectro da discussão.
Se olharmos para as conquistas cívicas mais emblemáticas desde o último século no mundo ocidental, uma lei parece desenhar-se: as sufragistas britânicas (1897-1918) lutaram pelo direito ao voto de cerca de metade da população (as mulheres), o movimento dos direitos cívicos dos negros nos EUA (1955-1968) lutou pelo alargamento dos direitos a 10-11% da população norte-americana e a população LGBT, que conseguiu conquistas notáveis nas últimas décadas nas sociedades ocidentais, não ultrapassará os 4,5% da população, a generalizar uma sondagem recente norte-americana.
A discussão dos direitos dos trans, um grupo heterogéneo de pessoas que não se identificam em nada ou apenas parcialmente com o sexo que lhes foi atribuído, só nos últimos anos ganhou protagonismo, respeitando a aparente lei que estabelece a sucessão das conquistas cívicas segundo a ordem decrescente da dimensão das populações directamente em causa, pois esta minoria, mesmo considerando classificações abrangentes, não representará mais de 0,6% e os casos identificados de disforia de género (pessoas que procuram terapia hormonal e cirurgia de reatribuição de sexo) são apenas 0,005–0,014% (sexo masculino à nascença) e 0,002–0,003% (sexo feminino à nascença).
A lei é trivial, pois quanto maior for o grupo excluído maior será a sua capacidade reivindicativa e mais prováveis serão os encontros entre elementos desse grupo e o resto da população, o que ajuda a estabelecer empatia e a afastar a desconfiança. Este é um dos problemas que os trans enfrentam: eles são tão raros (entre as crianças e jovens, “não serão mais de 200” em Portugal) que facilmente os ignoramos.
Assim foi até há pouco tempo para a maior parte de nós. Na minha infância e adolescência triviais, associei os trans apenas à exclusão, a uma arte que não me dizia nada e ao crime: a prostituição de rua no Conde Redondo, em Lisboa, os números de cabaret dos transformistas, o assassino em série perturbado com a sua identidade e género, que tanto me impressionou na adolescência quando a RTP passou o filme Dressed to Kill. Para muitos da minha geração sem convivência com trans, seria precisamente o cinema que os humanizaria, mas foi preciso chegar aos anos 90: The Crying Game (1992), Todo Sobre Mi Madre (1999) e Boys Don’t Cry (1999).
Outros filmes houve antes e depois, e cada um terá a sua lista, mas o cinema não chegou para gerar uma onda de comoção quando, em 2006, a transsexual Gisberta Salce Júnior foi brutalmente assassinada por um grupo de rapazes. Quantos não terão tido mais pena dos rapazes assassinos do que da vítima, que era transsexual, estrangeira e seropositiva? Somos teoricamente um país sem castas, mas onde os transsexuais, como sacos de pancada e alvos de injúrias e discriminação generalizada, foram cumprindo o papel dos desprezados “intocáveis” da Índia.
Já muito se escreveu sobre as recentes distorções e alarmismo a propósito do despacho que é uma consequência directa da lei n.º 38/2018 sobre o direito “à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à protecção das características sexuais de cada pessoa”. Vimos uma aliança de conservadores católicos nada incomodados com desprotegidos que não sejam os seus pobrezinhos, políticos focados na sua ascensão interna no PP e PSD, liberais susceptíveis que defendem o direito à morte por degolação com a cabeça espetada no pára-brisas porque o cinto de segurança é um instrumento da opressão do Estado, e ainda jornalistas e intelectuais que abominam a extrema-esquerda e encontraram na guerra cultural um sentido para a existência ou pelo menos um ganha-pão.
Esta descrição que acabo de fazer, cheia de processos de intenção e descrições jocosas, a que os conservadores e a direita me responderiam dizendo que defendo a “KGB do género” e mostrando uma natural aversão à “superioridade moral” e “virtue signaling” da esquerda, é um exemplo de um guerrear feito de chavões, viciante e preguiçoso, que ignora a nuance e vai destruindo a discussão. Ninguém sabe como inverter esta tendência, mas arriscaria dizer que, quanto a figuras paradoxais, fazem menos falta o católico nada cristão e o ateu fervoroso do que o moderado radical. Terraplenemos então primeiro para se construir depois: no debate sobre a autodeterminação de género, os críticos — como se viu e aqui se documentou — mentem activamente, mas os progressistas mentem por omissão, e se aos primeiros falta empatia, os segundos revelam um voluntarismo destravado.
O género como construção social
Para ir à essência do problema, parto de um texto do centrista Filipe Anacoreta Correia, que definiu a nova ideologia de género como “aquela que serve a ideia de que o género é matéria meramente volitiva ou de construção social”. Não se trata de uma caricatura, pois é essa a tónica de teses influentes pós-estruturalistas que têm inspirado muito activismo e as ciências sociais. E se por artes mágicas eliminássemos a aversão de base que muitos demonstram em relação ao Estado e à esquerda progressista, persistiria e seria merecedora de resposta a apreensão quanto à possibilidade de a autodeterminação de género legitimar caprichos ou modas sobre a identidade, sobretudo agora que uma nova ideologia de género ganha força no mundo ocidental e testemunhamos permanentes episódios de acção e reacção.
Não foi por mero acaso que, em 2017, a National Geographic fez uma capa com uma rapariga trans, ou que Trump esteja a reverter a legislação de defesa dos trans de Obama, ou que um programa de reality TV norte-americano com drag queens dure nove temporadas, ou que o canadiano Jordan Peterson se tivesse transformado em poucas semanas num dos intelectuais mais famosos do mundo por se ter recusado a acatar a imposição estatal (expressa na Bill C-16) de tratar os estudantes trans com pronomes alternativos “they”, “ze” e “zir”, ou que em 2015 a transsexual Caitlyn Jenner tivesse ganho um prémio de mulher do ano e quase fosse a personalidade do ano para a Time, ou que existam várias páginas na Internet associadas a instituições conservadores com histórias de transsexuais arrependidos da cirurgia de mudança de sexo, ou que só nos últimos três anos os trans tivessem realmente entrado na discussão política em Portugal. Estamos em guerra.
Considerar o género exclusivamente como influenciado pelo meio, por oposição ao sexo, determinado pela biologia, é uma ideia hoje defendida por veneráveis instituições como a UNESCO, a OMS ou a ONU Mulheres que, respectivamente, se referem ao género como uma “aprendizagem”, uma “construção social”, algo que depende do “contexto e da época”. Apesar de o novo significado da palavra “género” (até então uma distinção gramatical) ter sido inventado em 1955 por um influente sexólogo cuja reputação ficaria depois manchada pelo fim trágico de um dos seus pacientes e de a história deste conceito preceder o termo, a definição que circula é essencialmente uma herança de um feminismo promotor da ideia de que nascemos como uma tabula rasa que vai sendo depois calcada pelo meio ambiente e a sociedade.
A esquerda progressista adora esta tese pelo seu poder de dissolução de instituições e costumes, com vista à formação de um “homem novo”. A tese contribuiu para operar mudanças sociais justíssimas, nomeadamente no sentido da paridade entre mulheres e homens. O problema foi ter contribuído também para que ignoremos diferenças biológicas entre os dois sexos que se traduzem (estatisticamente) em escolhas e comportamentos inatos diferentes.
O cérebro e dois sexos
Tanto os bebés recém-nascidos do sexo feminino como as fêmeas recém-nascidas de outros primatas criadas em ambiente controlado, criaturas em que a influência do meio é anulada são (estatisticamente) mais sociáveis do que os machos da mesma idade criados nos mesmos ambientes. Entre os dois sexos, há variadíssimas outras pequenas diferenças comportamentais, de personalidade, cognitivas e de propensão para doenças neurológicas (por exemplo, o autismo é quatro a cinco vezes mais frequente em meninos do que meninas). Reconhecer estas diferenças não tira chão às conquistas sociais alcançadas pelas mulheres, obviamente. Só as refiro aqui porque algum tipo de dimorfismo sexual ao nível do cérebro é uma premissa essencial para compreender a génese da disforia de género.
Anatomicamente, o cérebro de homens e mulheres difere no tamanho do núcleo sexualmente dimórfico da área pré-óptica, no tamanho da amígdala e do hipotálamo, na espessura da camada cortical no hemisfério direito e na espessura do corpo caloso que une os dois hemisférios, daí decorrendo também diferenças funcionais. Seria muito estranho que assim não fosse tendo em conta o diferente contexto hormonal em que os fetos feminino e masculino se desenvolvem. Quando um bebé perde o pénis acidentalmente (por exemplo, durante uma circuncisão), é depois operado para ficar com uma vagina e sem testículos, e educado como uma menina, mesmo antes da puberdade ele sentirá um desajustamento entre o corpo e a mente, o que contraria aquela que é provavelmente a frase mais célebre de Simone de Beauvoir: “On ne naît pas femme, on le devient”.
No caso dos trans, pensa-se que a formação dos órgãos genitais e do cérebro ficou de algum modo desarticulada, o que é facilitado pelo natural desenvolvimento dessincronizado desses órgãos. Assim, o feto pode desenvolver-se com os genitais intactos e perfeitos de um sexo e o cérebro com características anatómicas e funcionais mais próximas das do outro sexo. Por outras palavras, a disforia de género que o indivíduo experimentará tem uma base biológica forte, sendo esta tese parcialmente sustentada por estudos de genética (com gémeos, irmãos e pessoas sem laços de parentesco), endocrinológicos, de imagiologia do cérebro e até funcionais (ver aqui uma revisão para leigos).
Para não ser ainda mais maçador, destaco apenas dois desses fascinantes trabalhos: recorrendo à imagiologia do cérebro para estudar a resposta a uma feromona que se sabe causar uma resposta diferente no hipotálamo de homens e mulheres, verificou-se que as raparigas e rapazes adolescentes com disforia de género responderam não de acordo como o sexo que lhes foi atribuído à nascença, mas sim de acordo com o sexo com o qual se identificam. Na mesma linha, quando testados com um som que também produz respostas estereotipadas distintas em homens e mulheres, os rapazes com disforia de género responderam como se fossem raparigas. Estas observações são interessantes porque estão exclusivamente associadas à mente e não aos órgãos genitais ou às características sexuais secundárias que definem o sexo e, obviamente, não se aprende a cheirar ou ouvir como quem encarna um papel – nem um Daniel Day Lewis, levando o method acting ao extremo, seria capaz de tal feito.
Um defensor do género enquanto apenas uma construção social diria que cheirar a feromona e ouvir um som de uma determinada maneira é uma manifestação do sexo, mas isso obrigar-nos-ia a mover os trans em questão para a categoria intersexo, violando a convenção corrente. O mesmo interlocutor recuaria então para a última trincheira, afirmando que não há descrições neutras no caso do género e até do sexo, sendo todas normativas, no que estaríamos de acordo. Mas o argumento essencial permanece: se o cérebro de homens e mulheres é diferente, ainda que essas diferenças sejam mínimas, não é preciso postular que as diferenças de género são exclusivamente sociais, pois podem ter também uma componente interna (biológica). O slogan feminista “Gender is between the ears, sex is between the legs”, que faz equivaler os dualismos género/sexo e mente/corpo, não pode estar correcto.
Alguns números para o debate
Não vale a pena endeusar a ciência, entre outras razões porque muitos destes estudos são incompletos e o consenso demora a emergir. O problema surge quando, sobretudo em matérias de grande relevância política, a discussão não vai além das apreensões e preconceitos, ambos legítimos como pontos de partida, e cristaliza num “achismo” impermeável à evidência que nos ajudaria a tomar decisões informadas e ponderadas. Por exemplo, estima-se que a probabilidade de um adolescente trans no início da puberdade vir a arrepender-se do tratamento iniciado (bloqueadores da puberdade) é baixa (1,9% entre jovens holandeses, num dos maiores estudos até hoje realizados).
Porém, sabemos também, a partir de vários estudos com amostras pequenas mas que conjuntamente se reforçam, que na maior parte das crianças pré-pubescentes a disforia de género é passageira (só cerca de um quarto continuarão a definir-se como trans na idade adulta). Esta inconstância nas crianças não será particularmente problemática, pois elas não são sujeitas a qualquer tratamento irreversível. E pelo menos um estudo sugere que a transição social (uso de um nome, pronomes e roupa do sexo com que de identificam) de trans entre os seis e os 14 anos lhes é imediatamente benéfica, independentemente de como virão a definir-se quando adultos.
Curiosamente, apesar da relevância deste tipo de estudos para o debate, mas não os vi citados na imprensa portuguesa e durante o longo e muito participado processo que deu origem à lei n.º 38/2018 estudos desta natureza só são mencionados uma vez, num curto mas pertinente parecer ignorado pelos deputados do PS, Bloco e PAN (e ainda Teresa Leal Coelho, do PSD) que viriam a aprovar a lei n.º 38/2018, e que poucos cidadãos devem ter lido.
Não são apenas as teses feministas que justificam a insistência na ideia de género enquanto construção exclusivamente social. Existe também o receio, justificado por uma história de atrocidades assentes em pseudociência, como as ultrapassadas terapias de reorientação sexual, de que a explicação biológica do comportamento levará forçosamente à sua patologização, com todas as graves consequências sociais e psicológicas daí decorrentes. Por isso, várias instituições, como a OMS, têm vindo a redefinir a sua posição no sentido da despatologização da transsexualidade. O DSM-V, a última edição do influente manual da American Psychiatric Association, publicado em 2013, trocou o “distúrbio de género” pela “disforia de género”, no sentido de remover o estigma de doença, defendendo-se agora a ideia de que o desconforto psicológico não está necessariamente associado à condição trans — há trans em paz — e resulta de uma sociedade e cultura que os estigmatiza.
A alteração faz todo o sentido, tendo paralelos óbvios com a despatologização da homossexualidade (que surge no DSM em 1973) e outros, menos óbvios e porventura mais polémicos, com o movimento recente de defesa da neurodiversidade, que pugna por remover o estigma de doença de manifestações como o autismo, mas por vezes parece que na construção deste novo edifício se começa pelo telhado. No caso concreto da autodeterminação de género em Portugal, em linha com directrizes internacionais, os projectos de lei do Governo, Bloco de Esquerda e PAN, que acabariam fundidos, eram coincidentes na dispensa de um exame psicológico. Este ponto de honra visava fazer contraponto à lei da identidade de género de 2011 que obrigava à apresentação de um relatório médico comprovativo de um distúrbio do género. Entende-se que a lei de 2011 precisava de ser alterada, dada a evolução recente no sentido da despatologização.
Mas a dispensa de exame psicológico pretendia ir um passo além, imbuída de um absolutismo emancipatório que soa a criancice, no sentido literal de me lembrar a insistência das minhas filhas de quatro anos em fazer certas actividades sozinhas. É significativo que as instituições com os conhecimentos técnicos sobre o assunto que faltam ao Parlamento e câmaras da magistratura, o Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência e o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), tivessem emitido pareceres de grande qualidade (sobretudo o do CNECV, a revelar muito labor) e coincidentes na crítica à ausência do exame psicológico. Esta recusa é muito característica da esquerda e vimo-la aquando da discussão sobre a despenalização da IVG (a de 2007), talvez por, em paralelo com a ideia moderna de despatologização (que é boa) persistirem na cabeça dos progressistas velhos estereótipos, como o do médico enquanto figura hegemónica e omnisciente, e a ideia de que só os “malucos” vão ao psiquiatra.
Por veto presidencial, o exame psicológico viria a ser incluído na versão final da lei, mas apenas para cidadãos entre os 16 e os 18 anos. Talvez se pudesse ter feito melhor e incluir também os cidadãos adultos, eventualmente segundo um modelo de consulta obrigatória, mas em que o psicólogo/psiquiatra funcionasse como consultor e não como juiz, à semelhança do modelo alemão da IVG, respeitando-se assim o espírito da lei (a autonomia). A menos, claro, que os progressistas também fiquem melindrados quando o computador nos pergunta se queremos mesmo apagar um ficheiro.
São três os argumentos que justificam a consulta médica. Haverá uma percentagem, por mais ínfima que seja, de indivíduos que, debatendo-se com a identidade de género e não vivendo num ambiente propício à formação de opiniões ponderadas e aberto à procura de ajuda médica, teriam muito a ganhar se fossem obrigados a contactar com alguém treinado nestes assuntos. Estão também descritos casos de convicções delirantes que, sendo o requerente adulto, esta lei não filtra. E não admitir a complexidade da decisão em causa será, a muito curto prazo, uma contradição evidente, pois caminhamos no sentido da aceitação da fluidez de género, a ideia de que a corrente distinção binária entre macho e fêmea é uma simplificação e que faz mais sentido entender o género em termos de gradientes de masculinidade e feminilidade que se interpenetram.
Ora, se os progressistas acreditam mesmo na fluidez de género, terão de admitir que alguns indivíduos estarão numa posição tão intermédia nestes gradientes de género que decidir se se sentem homens ou mulheres, que é o que a lei por agora lhes pede, será complicadíssimo, e só haveria vantagem em incluir no processo de decisão uma consulta médica obrigatória, eventualmente dispensável a pedido, se tal fosse preciso para convencer os deputados mais radicais, em que o médico fosse um consultor e não um decisor.
O elefante na sala
A prosa vai longa, mas falta abordar o elefante na sala: ao se passar do 8 ao 80, haverá o risco de a inclusão social e a promoção cultural dos trans converter crianças e jovens cisgénero influenciáveis em trans equivocados? Mais do que a fobia quanto a hipotéticos encontros nas casas de banho das escolas que deixam alguns sob efeito daquela vertigem capaz de transformar as prédicas do Diácono Remédios em actos falhados libidinosos, e sem deixar de lembrar que promover a inclusão de uma minoria até agora muito mal tratada não foi ir do 8 ao 80, creio que é sobretudo o medo de uma moda trans que preocupa os pais.
Nos EUA, o número dos que se definem como trans está a aumentar e é provável que, devido à inclusão crescente e à influência das redes sociais, esta tendência se mantenha, embora talvez grande parte do aumento venha a ser feito à base daqueles que rejeitarão o sexo que lhes foi atribuído à nascença sem necessariamente recorrerem a uma cirurgia de reatribuição de sexo. A conta a fazer é esta: será que a tendência actual se traduzirá num aumento do bem-estar da população, pela diminuição dos casos de trans reprimidos que não se assumem e pela melhoria de vida nos trans assumidos, difícil até nesse paraíso na Terra que é a Suécia, ou, pelo contrário, teremos uma diminuição do bem-estar geral pelo aumento em paralelo de trans equivocados que se arrependerão da sua decisão?
Creio que não há números que permitam realizar este cálculo utilitarista, mas a actual percentagem de suicídio entre os trans, que no caso dos trans adolescentes que se identificam como homens chega uns assustadores 50,8%, leva-nos a concluir que só uma improvável avalanche de conversões equivocadas geraria um saldo de bem-estar negativo que nos faria repensar o caminho agora iniciado. Naturalmente, o princípio da precaução recomenda que nos casos das decisões irreversíveis (nomeadamente as cirurgias de reatribuição de sexo), a decisão deve ser ponderada e devidamente desafiada, sem receios quanto a uma suposta violação da autonomia e “capacidade civil”, isto é, assegurando que todos possam beneficiar de um diagnóstico correcto e sem precipitações, como recomenda um dos grandes especialistas portugueses, o cirurgião plástico João Décio Ferreira.
Fora dos círculos académicos e do activismo, o termo “ideologia de género” é hoje referido em tom de insulto ou piada, como se fosse uma modernice. Muito mais relevante do que lembrar que os trans não surgem apenas na nossa espécie, pois a zoologia revelou vários exemplos, do mimetismo sexual à mudança de sexo de alguns peixes, é lembrar que a antropologia nos fornece vários exemplos de que as sociedades podem organizar-se segundo modelos que incluem mais de dois géneros, o que nos diz que sempre vivemos sob alguma ideologia de género, que o modelo tradicional nas sociedades hoje hegemónicas, o sistema binário com o género masculino e feminino, é apenas um dos arranjos possíveis, e que a construção do género se faz com a biologia e a cultura. Os modelos são representações da realidade, mas não se confundem com ela, querem-se como simplificações, caso contrário seriam inúteis — um mapa do tamanho do território que descreve não serve para nada. Na nossa sociedade, este sistema funciona muito bem para cerca de 99% das pessoas, nomeadamente para quem consegue esquecer os restantes 1%, mas não funciona de todo para estes.
Um dos equívocos é pensar que reconhecer os trans e novas classificações de género implica acabar com o sistema binário. Não implica. Na prática, o sistema binário, simples e intuitivo, continuará a ser útil para a maior parte das pessoas na maior parte das situações. Mas tenhamos presente, cada vez mais, que é uma simplificação. O mesmo sucede com a física newtoniana, que continua a descrever com exactidão fenómenos macroscópicos, mesmo depois de se ter começado a usar a mecânica quântica para o mundo das partículas subatómicas e as teorias da relatividade para velocidades próximas das da luz, grandes massas ou grandes distâncias, isto é, para um conjunto de situações em que a física newtoniana não funciona e que são explicados por teorias muito mais complicadas e nada intuitivas. Embora seja um ávido consumidor de distopias, tenho dificuldade em imaginar de que forma uma sociedade em que 1% da população se declare trans entraria em colapso. Mas reconheço que também jamais imaginei que um dia iria ver famílias muito católicas e lésbicas radicais unidas numa mesma luta: expulsar trans de casas de banho.
Sabemos que a pulsão sexual é um filão que Estados, religiões, psiquiatras de ego descomunal, pornógrafos, fundadores de cultos sinistros, artistas e escritores de grande talento, e homens e mulheres “tóxicos”, entre outros, não resistem a instrumentalizar para controlar populações e indivíduos. Sabemos que o universo do sexo e do género nos atrai como poucos outros. Mas quando jovens tentam matar-se porque a sociedade lhes recusa certas necessidades que são sobretudo fruto de circunstâncias incontroláveis, como pode haver dúvidas sobre o que fazer?
Sim, precisamos de assumir o livre arbítrio para que haja culpa e a civilização não acabe. Sim, precisamos de ir acreditando na nossa vontade para que tudo isto vá funcionando, mas não podemos andar perpetuamente iludidos. O que nos salva da escravidão do determinismo biológico é a complexidade do nosso comportamento, de base multifactorial (poligenética) e moldado pelos acasos da vida, num determinado contexto sociocultural, que nos vai fazendo únicos. A genética da homossexualidade começa a ser conhecida e é um alívio saber que não existe “o gene da homossexualidade”, mas muitos genes, e que não se consegue prever a partir da genética que orientação sexual a pessoa assumirá um dia, apesar de existir uma componente genética substancial na homossexualidade: se um de dois gémeos verdadeiros for homossexual, ainda assim o mais provável é que o seu irmão seja heterossexual.
O debate sobre a parte de influência dos genes e do meio ambiente eterniza-se dada a sua relevância política e o braço-de-ferro entre duas culturas e respectivas corporações — as humanidades dominadas pelos herdeiros do pós-estruturalismo versus a biomedicina, sem que nenhuma síntese consensual tenha emergido (a sociobiologia nunca se livrou da reputação de disciplina reaccionária e a psicologia evolutiva é essencialmente uma fonte de pop science para revistas de fim-de-semana). O debate eterniza-se também porque a estimativa da contribuição destas duas influências para os comportamentos (por exemplo, a orientação sexual) e características (por exemplo, a inteligência) a que damos importância frequentemente são equilibradas, próximas de uma divisão salomónica que nos soa a compromisso entre as facções e não satisfaz a nossa ânsia de hierarquizar, mas que é absolutamente redentora.
Para este debate, a transexualidade é um fenómeno ainda mais interessante do que a homossexualidade por ser auto-referencial. E um dia a genética e biologia do desenvolvimento da transexualidade também serão conhecidas e perceberemos ainda melhor que andámos a condenar pessoas por um determinismo combinado com imponderáveis que elas em grande parte não controlam. Nem elas que são trans, nem nós que somos cis.
Um pouco de abertura de espírito
Referindo-se a Portugal e aos portugueses, Eduardo Lourenço fala repetidamente de um “excesso de identidade”. O conceito banalizou-se, mas aqui aplico-o aos indivíduos. Em Portugal, um homem branco, heterossexual, “católico não praticante” e que vá votando no “Bloco Central” dificilmente terá esse problema, mas uma fictícia mulher negra, homossexual, trans, judia e que vote no PAN correria sérios riscos de vir a sofrer de “excesso de identidade”. Para os cis, compreender a luta dos trans por uma identidade de género exige imaginação e alguma tolerância para os excessos típicos dos momentos de transição, como o que vivemos.
Quando Martina Navratilova fez alusão ao facto óbvio de que as atletas mulheres transexuais em desportos de alta competição têm sobre as adversárias cis a vantagem de o seu corpo se ter desenvolvido com níveis masculinos de testosterona, e foi logo socialmente penalizada por uma associação LGBT, sentindo necessidade de depois fazer um documentário em que se retracta, testemunhámos os efeitos perniciosos de uma cultura vergada ao excesso de identidade de um grupo historicamente marginalizado. Seria também um tremendo erro político se, por cedência à nova ideologia da identidade de género, se impusesse por decreto aos cidadãos o uso de pronomes bizarros no tratamento dos trans que não se vejam representados no actual sistema binário de géneros — é o tipo de mudança que, se necessária, só pode vir a acontecer gradual e naturalmente, como sucedeu já com certos termos problemáticos.
Mas a nova lei sobre o direito à autodeterminação de género e o despacho que tanta polémica trouxe, ainda que não levem em conta os casos raros de “convicções delirantes de transformação sexual”, para citar uma das preocupações recorrentes nos pareceres do CNECV, vão essencialmente no sentido de facilitar a vida aos que têm dificuldades acrescidas na busca da identidade, essa grande chatice, a tal “questão que tenho comigo mesmo”, para citar O’Neill fora de contexto. São alterações legislativas que a todos pedem apenas um pouco de abertura de espírito e nada mais, sem interferências na esfera familiar que vão além do que seria razoável esperar de um Estado de direito.
Trinta e três anos separam Dressed to Kill, o filme de Brian de Palma, de Dressed to Kill, o espectáculo de comédia stand up do transgénero britânico Eddie Izzard. No filme, Michael Caine representa um travesti perturbado pela sua disforia de género que se veste de mulher para matar; no espectáculo, um tranquilíssimo Izzard veste-se e maquilha-se de mulher para matar a assistência de riso. Não rimos da sua figura, nem por ele ser trans, de rímel, bâton, blush e saltos altos; rimos pelo seu talento fora-de-série e como se apresenta é secundaríssimo, até por praticar um humor omnívoro nos temas que toca e não se refugiar na piada para minorias. Apesar do voluntarismo progressista que a forjou e da ressaca conservadora a que assistimos nas últimas semanas, a lei n.º 38/2018 contribuirá para que também nós tenhamos um Izzard no futuro. E será belo o dia em que o trans mais célebre for conhecido pelo que faz e não pelo que é.
Biólogo e Investigador FCT no Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa