Sérgio e as outras vítimas
A organização onde Sérgio trabalhou durante 34 anos se recusa a seguir a determinação da lei brasileira, que garante que Sérgio e eu tínhamos uma união estável. Essa mentalidade patriarcal, que protege valores anacrônicos, viola o direito elementar de qualquer mulher.
O sol abrasador que mantinha a temperatura de Bagdad estacionada em 50º C fez com que nossa manhã começasse cedo, como ele tanto gostava. Entrei na cozinha para preparar um chocolate quente e uma fatia de mamão, mas os planos de um café da manhã tranquilo foram frustrados quando percebi que uma queda de energia durante a madrugada havia talhado o leite. Tivemos que nos contentar com Ovomaltine diluído em água. Ele não reclamou. Tomou minha mão entre as suas e disse, para me consolar, que logo estaríamos no Rio de Janeiro. A promessa foi acompanhada de seu sorriso franco e de um beijo apressado. Em seguida, ele pegou a pasta e partimos na direção do Hotel Canal, onde ficava nosso escritório. Voltamos a nos encontrar horas mais tarde. Ele já não sorria, então. Preso entre os escombros de um prédio em chamas, esforçava-se para manter a consciência enquanto eu tentava, inutilmente, resgatá-lo.
O atentado terrorista contra a sede das Nações Unidas no Iraque, em 19 de agosto de 2003, matou 22 funcionários da organização, entre eles meu marido, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. No momento de sua morte Sérgio ocupava o cargo de alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos. Ele fora enviado ao Iraque para ajudar o país a construir um governo democrático no pós-guerra, e eu o acompanhei no papel de economista para seguir as discussões sobre o futuro do petróleo na região. Trabalhei sete anos na ONU. Sofremos lado a lado o excesso de calor e a falta de segurança, as dificuldades no trabalho e a desconfiança da população, mas também compartilhamos o sonho de um futuro melhor. Nunca passou pela minha cabeça não o acompanhar ao Iraque. Afinal, éramos uma família. Vivemos juntos em Genebra, Nova Iorque e Timor-Leste, não seria diferente em Bagdad. Mesmo assim, a ONU se recusou a reconhecer o meu papel na vida de Sérgio. Fui excluída das listas de sobreviventes do atentado e, apesar de ter sido testemunha da tragédia, minha declaração ficou de fora das investigações. O tratamento diferenciado deveu-se ao meu estado conjugal; sem um documento que provasse que éramos marido e mulher, eu simplesmente não existia para a organização.
Essa é uma atitude difícil de entender quando se leva em conta o historial das Nações Unidas na promoção dos direitos humanos. Tanto na Plataforma de Ação de Pequim (1995) como na convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (1979), a entidade promove a existência de diversas formas não convencionais de famílias. Trata-se de um reconhecimento importante por proteger mulheres que vivem com seus parceiros sem um documento que comprove essa união. Afinal, são essas mulheres as que mais sofrem preconceitos e têm seus direitos ignorados quando perdem companheiros em eventos trágicos.
Embora reconheça isso oficialmente, em seu estatuto interno, a burocracia da ONU continua promovendo o conceito tradicional de família, isto é, a constituída unicamente via casamento. Devido a essa situação paradoxal, a organização onde Sérgio trabalhou durante 34 anos se recusa a seguir a determinação da lei brasileira, que garante que Sérgio e eu tínhamos uma união estável. O julgamento brasileiro — obtido como consequência de um processo judicial de dez anos, que examinou cuidadosamente as evidências apresentadas por todas as partes — é claro e definitivo. O governo brasileiro também confirmou às Nações Unidas que, com base no julgamento, nossa família “tem status igual ao casamento, para todos os fins legais”. No entanto, a organização persiste em seus valores vitorianos.
Essa mentalidade patriarcal, que protege valores anacrônicos, viola o direito elementar de qualquer mulher: o de ter seu papel reconhecido, sua figura legitimada e sua existência confirmada como parceira do homem com quem escolheu viver. Também fere a dignidade humana ao incitar desvantagens, estereótipos e preconceitos políticos e sociais.
Sérgio costumava dizer que é preciso expor a igualdade entre as pessoas com ações, não com palavras. Dezasseis anos se passaram desde então. Está na hora de homenageá-lo, e a tantos outros como ele, respeitando suas escolhas pessoais e legitimando a família e a mulher que o acompanharam nos últimos anos de sua vida em vez de soterrá-las sob preconceitos que não encontram mais espaço nos tempos atuais. Está na hora de a ONU pôr um fim à incoerência entre o discurso oficial e sua política interna, para que as vítimas negadas pelo sistema encontrem a paz e a dignidade que merecem.