Ao longo dos ainda curtos sete anos entre corredores, paredes e cortinas de hospital, são-me confiadas histórias da vida das pessoas, dilemas distintos a que subjazem culturas e percepções diferentes das minhas. Essa é, sem dúvida, uma das grandes honras da minha profissão. Cruzo-me com colegas, utentes e seus familiares vindos dos quatro cantos deste mundo, e sou sempre relembrada que a minha realidade e a interpretação que faço dela não são regra nem modelo, mas sim resultado da liberdade que me foi dada para moldar, com a minha educação, a pessoa que eu sou hoje.
O Asif (nome fictício) é mais uma destas pessoas com que me vou cruzando, desta vez no Bangladesh, a cuidar de utentes que são refugiados rohingyas. O Asif é natural de Cox's Bazar, trabalha como enfermeiro no Hope Field Hospital for Women naquilo que aqui equivale à Urgência, onde trabalhamos lado a lado a maior parte dos dias. É mais novo do que eu quatro anos, mas é como se já tivesse mais e ainda um doutoramento conferido pela vida, quando comparado comigo, aos 28.
Cumprimenta-me a mim e a todos sempre da mesma forma: respeitosa, sorridente, numa postura constante de quem está pronto a servir o outro. O Asif não é voluntário, ajuda a família com o que ganha aqui. Rejeita a quase reverência com que algumas mulheres se dirigem a ele e o tratam, sejam estas utentes ou colegas. É admirável que, ao mesmo tempo que faz tudo isso, consiga ainda adaptar-se diplomaticamente aos que não fazem igual, sem deixar de dar sempre o exemplo do bem.
Uma vez, pediu-me desculpa minutos depois de me ter dito, num turno particularmente atribulado, para eu adiantar as nebulizações de uma mulher enquanto ele chamava o próximo doente. Perguntei-lhe por que pediu desculpa e ele ficou encabulado, a dizer que se esqueceu do “por favor” e que, além disso, também sabia que, no Ocidente, as mulheres levavam a mal um homem “mandá-la fazer coisas”, especialmente sem dizer “por favor”. Eu nem tinha reparado e no momento até aplaudi mentalmente a iniciativa dele liderar e delegar perante o sem número de coisas para fazer.
Ele achou que me tinha ofendido. O Asif adivinha sempre, sem nenhum tipo de directiva, os limites de cada mulher que entra no consultório e adapta a consulta naturalmente. Apercebe-se e aprecia discreta e individualmente se o melhor é chamar alguém para também estar presente, se pedir para levantar o lenço que lhes cobre o cabelo — e, por vezes, a cara — é admissível, se a mulher está assustada. A sua sensibilidade bate recordes quando, descontraidamente, dirige o olhar e discurso à criança que a mulher traz consigo enquanto transmite instruções à mãe, que evita o menor contacto numa expressão inacessível e derrotada.
Em conversas de almoço ou entre consultas vamo-nos conhecendo, trocando ideias e visões. Fomos educados de jeito diferente e com acesso diferente (e desigual!) a recursos vários. Tornámo-nos, inevitavelmente, pessoas bem distintas. No entanto, vim a notar o tanto que temos em comum numa destas conversas quando me disse, num inglês rudimentar e autodidacta: “Nós não pensamos igual porque tu foste educada em Portugal e eu, no Bangladesh. Eu não vejo a mulher igual ao homem como vocês no Ocidente, mas não a vejo como menor. Eu respeito o ser humano. Todos merecem ser bem tratados. Todos viemos ao mundo e por isso o mundo é para todos.”
E ali estava uma verdade do Asif que o Ocidente podia ouvir mais vezes. Não consegui responder. Olhei-o e brindei com o cotovelo porque tínhamos as mãos sujas de comer o arroz sem talheres.
Dedicado ao Asif, que acredita na causa de acolher no seu país quem foge dos horrores praticados na terra natal.