“Isso é com o mercado”
Era tempo de repensar a sério o papel do Estado no mercado do livro, a montante e a jusante, aprendendo com os erros de há 40 anos, clarificando as zonas nebulosas da sua gestão corrente.
Depois de uma triunfal embaixada à Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no final do ano passado (com um custo total de 1,8 milhões de euros, cobrindo os privados menos de 20% desse montante), a presença do Estado português na edição nacional (através do Ministério da Cultura e organismos sob sua tutela) continuou pelo ano presente, da bizarra sessão de promoção de uma colecção de biografias de vultos da cultura nacional na BN, em Janeiro, amadrinhada in loco pela própria ministra, a uma nova embaixada, desta feita à China, para inaugurar um “Festival de Cultura Portuguesa” em Pequim (um ano depois de o director português de um festival literário em Macau se ter demitido ao saber da ingerência das autoridades chinesas na lista de convidados).
Digo “presença na edição”, pois é esta a premissa que se tem forçosamente de aceitar quando se discute porque e se deve o Estado imiscuir-se, directa e indirectamente, no mercado editorial: ele já lá está. Se os exemplos que referi atrás são mais de representação oficial a jusante, de uma actividade promocional peripatética na foz do processo, levando livros, editores e autores consagrados a festivais mundiais ou cedendo edifícios públicos para a promoção de campanhas de editoras privadas (no caso, uma do grupo dominante no mercado, e tão dominante que arrasta a ministra para a apresentação de livros ainda inexistentes), não faltam exemplos da sua intervenção bem a montante (como a atribuição anual de bolsas de “criação literária” – em 2018, um total de 135 mil euros – sem procurar destrinçar se o autor apoiado vai publicar o seu manuscrito em auto-edição ou numa pequena editora, ou se vai entregá-lo, por exemplo, a uma editora do dito grupo dominante, dando a esta uma ainda maior vantagem financeira sobre a concorrência).
Além disso, é preciso não esquecer que o Estado possui também uma editora e uma gráfica de monta, a INCM, cujo catálogo compete, em certos domínios, com o de muitas editoras. Com cinco lojas distribuídas por três cidades do país, a INCM funciona também como uma pequena cadeia livreira, onde se vendem livros da casa e de “editoras afins”, termo vago e aberto à especulação sobre a natureza dessas afinidades (o processo de propor uma edição para as suas lojas é moroso e omisso quanto aos critérios de selecção, carecendo de um mínimo de rigor burocrático, como uma ficha de proposta).
Se há área, contudo, em que a intervenção estatal está conspícua e inexplicavelmente ausente é a da distribuição. Ora a fanfarra a que atrás me referi fez esquecer um incómodo aniversário: o dos 40 anos da desintervenção do Estado nos destinos do Bloco Editorial Expresso, ou, por outras palavras, do abrupto fim de um projecto de empresa pública de distribuição de livros. Decorrente directo das nacionalizações da banca e das seguradoras em Março de 1975, o “caso Bloco-Expresso” (por então uma empresa do portefólio da Seguros Império, pertencente à CUF) arrastou-se durante quatro anos e tocou todo o espectro político, do governo pró-comunista de Vasco Gonçalves ao do PSD de Mota Pinto, passando pelos do PS e CDS.
Se a decisão de criar uma EP de distribuição que oferecesse serviços mínimos às editoras (nacionalizadas ou não) pode ter sido mais um efeito das circunstâncias revolucionárias do que da vontade corajosa e reflectida de providenciar modos alternativos de circulação do livro, certo é que a empresa em causa tinha tudo para justificar esse investimento. Fora criada em 1970 como um “clube do livro”, que, reunindo algumas das melhores editoras nacionais, permitiria aos seus associados o raro acesso a livros proibidos pela Censura ou no centro de explosivas polémicas: a primeira edição comercial de Luuanda (Edições 70), as Novas Cartas Portuguesas (Estúdios Cor), o Dinossauro Excelentíssimo ou Portugal e o Futuro (Arcádia). A esta vitalidade, o poder financeiro da Império deu uma pujança que é nítida na revista que, em 1974, substituiu o boletim, com um recém-nascido na primeira capa a prometer “vida nova”.
Se havia distribuidora indicada para que o Estado dela fizesse a base para um bom serviço público ao dispor de editores e livreiros, era esta. Em vez disso, seguiu-se um calvário de gestão negligente, culminando num desastroso acto de desintervenção, sem a imediata declaração de falência, permitindo que empregados em desespero retirassem milhares de livros dos armazéns para os venderem a patacos nas ruas, magra compensação dos seus salários em atraso mas em absoluta e irreparável perda para os editores, que havia anos não recebiam da distribuidora (a consulta do processo que a Afrodite moveu ao Estado por este motivo é reveladora, mas também a Estampa e a Livros Horizonte procuraram então ser ressarcidas pelos meios legais).
A ironia cruel desta história é que, receoso de sustentar um desvirtuamento das regras do mercado, o Estado afastou-se de vez da distribuição (no caso da distribuidora do Século, em 1985, o corte foi menos brutal, resumindo-se a um humilhante leilão dos stocks), apenas para que, depois de sucessivas falências de grandes distribuidoras de referência, se chegasse a uma situação em que dois grupos editoriais imperam, tendo um deles mesmo a maior distribuidora nacional e a maior cadeia de livrarias. No I Congresso de Editores, em 2001, confrontado com a falência da Diglivro, o ministro Santos Silva respondia precisamente que “isso é com o mercado”, “isso” sendo, bem entendido, apenas a distribuição, pois na edição, na impressão, na venda em livraria, no apoio financeiro a autores, etc., o Estado estava, como continua, presente.
Quando é claro que o salvífico “mercado”, em vez da diversidade de oferta e de meios de circulação e distribuição do livro, apenas facilitou a concentração e cimentou uma situação de estrangulador domínio por um par de grupos (a que se juntam as todo-poderosas grandes superfícies de retalho), urge repensar a sério o papel do Estado nele, de montante a jusante, sobretudo na distribuição (fornecendo as suas livrarias de livros próprios e alheios, não funcionará já a INCM como uma distribuidora?), aprendendo com os erros de há 40 anos, clarificando as zonas nebulosas da sua gestão corrente. (Com um agradecimento a Leonardo de Freitas)
Nota: Sobrevivente do caso da distribuidora do Século, ela própria também pequena distribuidora por necessidade, a Ulmeiro fecha a livraria de Lisboa que a representa há 50 anos. O brutal aumento da renda ditou o final, e os amigos das selfies de há uns anos deram lugar ao habitual silêncio da vereação cultural no fecho de livrarias históricas e até a um ataque cobarde na imprensa. Parabéns, pois, a Nuno Nabais por ter vindo em socorro e dado uma segunda vida à Ulmeiro na Fábrica Braço de Prata.