Trabalhadores por turnos: uma legislatura e uma oportunidade perdida
O recurso ao trabalho por turnos tem vindo a ser alargado e transformou-se num polvo cujos tentáculos foram agarrando os vários setores da economia.
O trabalho por turnos é uma modalidade de organização do tempo de trabalho que nos convoca para um debate importante no quadro da realidade laboral atual. Tendo em conta o desgaste que provoca e as suas consequências nefastas para a saúde dos trabalhadores, bem como a dificuldade acrescida que gera para a conciliação da vida pessoal e familiar com o trabalho, esta forma de organização tem-se revelado um preço demasiado alto para os trabalhadores. Um preço que não tem sido compensado nem por uma resposta adequada em sede de contratação coletiva, nem pela definição de um quadro legal que garanta direitos mínimos no Código do Trabalho, mitigando a sua penosidade.
Segundo dados do Relatório Anual sobre Emprego e Formação Profissional de 2018, do Centro de Relações Laborais (CRL), apresentados no início do mês de julho, entre 2011 e 2018 o número de trabalhadores que mais cresceu foi o dos que trabalhavam por turnos (28,1%) e depois os que trabalhavam serões (26,7%) e os que trabalhavam à noite (25,4%). Em 2009, eram mais de 440 mil e, em 2018, chegavam aos quase 750 mil trabalhadores.
Conforme explica Liberal Fernandes, “diferentemente do regime geral ou comum — em que o período de funcionamento da empresa coincide com a duração do tempo de trabalho —, no trabalho por turnos, a actividade laboral na empresa é repartida pelos vários períodos do dia (manhã, tarde ou noite), de modo a que os mesmos postos de trabalho sejam sucessivamente ocupados por diferentes equipas”. No entanto, como também clarifica, “embora historicamente tenha sido justificado por razões tecnológicas, maxime na indústria pesada, o recurso ao trabalho por equipas tem progressivamente sido adoptado por razões de natureza económica, em particular pelo interesse em aumentar o período de uso dos equipamentos, de funcionamento dos serviços ou dos estabelecimentos (designadamente os de venda ao público)”.
Gradualmente, o recurso ao trabalho por turnos tem vindo a ser alargado e transformou-se num polvo cujos tentáculos foram agarrando os vários setores da economia: a sua utilização generalizou-se na indústria, nos vários serviços de transporte, de distribuição de água, energia, telecomunicações, correios, hotelaria, etc. O argumento não é novo e assenta na ideia da necessidade de flexibilização do mercado laboral português, tão instigada pelo FMI e pelos Memorandos de Entendimento da troika. Num discurso algo ambíguo, o economista Francisco Madelino, ex-diretor do Instituto de Emprego e Formação Profissional, ao Diário de Notícias reconhece que “a flexibilidade do mercado laboral português é elevada” e fala da necessidade de políticas públicas e de contratação coletiva que facilite a compatibilização entre trabalho e família. Se está demonstrado que o desgaste provocado pela atividade exercida nestes moldes pode contribuir para a diminuição da produtividade, para o aumento da sinistralidade laboral e um impacto devastador na saúde dos trabalhadores (perturbações no sono, fadiga, depressão, perturbações no sono, cardiovasculares, maior incidência de cancro), caracterizados por Isabel Maria dos Santos Silva, as respostas tardam.
Como se descreve na obra 24/ 7 – O capitalismo tardio e os fins do sono, de Jonathan Crary, “a ausência de sono é o estado em que a produção, o consumo e a eliminação ocorrem sem pausas, o que acelera a exaustão da vida e o esgotamento dos recursos. Enquanto último grande obstáculo – na verdade, o último do que Karl Marx designou por «barreiras naturais” – para a concretização plena do capitalismo 24/7, não se pode eliminar o sono. Mas ele pode ser arruinado e espoliado, e já estão em curso métodos e motivações para conseguir essa ruína”.
Na verdade, as iniciativas legislativas apresentadas por BE e PCP sobre trabalho por turnos foram chumbadas por PS, PSD e CDS. Nas propostas estavam inscritas medidas importantes com vista a atenuar um abuso (que também tem que ser combatido) ao recurso a esta forma de organização do tempo de trabalho, nomeadamente, medidas com vista à definição de um período máximo de trabalho semanal; de um período de descanso na mudança de turno; de fins de semana de descanso; de direitos de participação dos trabalhadores e das suas estruturas representativas; de um período máximo de trabalho semanal mais reduzido; de aumento dos acréscimos retributivos e dos dias de férias; de alargamento do acesso a exames médicos e de cuidados e antecipação da idade legal de reforma.
O filme Pão e Rosas, do realizador britânico Ken Loach, retrata a vida de duas imigrantes mexicanas, Maya e Rosa, que trabalham como empregadas de limpeza nos Estados Unidos. Uma realidade que, tantas vezes, deixamos que fique para lá de todos os muros… É a representação da precariedade extrema e do percurso de uma organização sindical de trabalhadores terceirizados nesse contexto. Em uma das cenas, uma das colegas de Maya chega atrasada e ouve, com visível temor, perante uma plateia de trabalhadores assustados, a voz de reprimenda e humilhação do chefe. Depois de justificar que o autocarro se tinha atrasado, o patrão diz-lhe que vai perder o turno mas, pior, imagine-se, que como não tinha levado os óculos, ter vindo era inútil e que está despedida, apesar de a trabalhadora lhe repetir, devastada, que precisa do trabalho. “Isto é um negócio. Não é um acampamento de paralíticos.” E perdeu o turno. Perdeu o emprego. Perdeu o que lhe faz falta. Pão, pois.
Já cantava o Sérgio Godinho:
“Eu que trabalho em turnos noite e dia/
Confundo o viver dentro e o estar por fora/
E sempre a solidão por companhia”.
E, sim, perdemos o turno. É insistir. Noite e dia. Noite e dia.”
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico