A tecnologia não é para raparigas? Regina Honu combate a desigualdade de género através do código
Regina Honu não quis acomodar-se à ideia de que em África as soluções têm de vir de fora. Por isso ajudou a criar a Soronko Solutions, um programa que leva às mulheres africanas bases de ciências, tecnologia, engenharia e matemática.
Desde muito cedo se habituou a ouvir duas coisas: a de que a tecnologia era uma área exclusiva para rapazes e de que no seu continente, o africano, o habitual era esperar que as grandes soluções viessem de fora. Regina Honu, de 36 de anos, nunca acreditou em nenhuma delas. Natural do Gana, sempre foi apaixonada pela tecnologia e conseguiu, a custo, trabalhar na área da programação.
Mas isso só não lhe bastava, porque continuava a pensar nas jovens do continente africano que, tal como ela, teriam de fazer um esforço acrescido para triunfar nestas áreas. Essa preocupação levou-a a co-criar a Soronko Solutions em 2013. À semelhança de muitos outros programas já existentes em países africanos, é responsável por ensinar código a raparigas e transmitir bases de ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEAMS, na sua sigla em inglês) no Gana e no Burkina Faso.
Encontrámos Regina Honu numa visita que fez a Portugal para participar na Conferência Mundial de Ministros Responsáveis pela Juventude e no Fórum da Juventude “Lisboa +21”. Em entrevista ao PÚBLICO, Regina fala da importância da educação tecnológica para o desenvolvimento de um país, mas também do papel das mulheres jovens na sociedade.
Porque decidiu criar a Soronko Solutions?
Surgiu de uma dificuldade que tive. Durante a minha juventude, sempre me disseram que a tecnologia não era para raparigas, só para rapazes. Notei por mim própria que no continente africano não criamos soluções para os nossos problemas. Temos de esperar por ajuda externa, ou pela intervenção do Governo. Quis mudar isso. Senti que os jovens do meu país e do continente [africano] tinham a capacidade para resolver os seus próprios problemas, mas era preciso dar-lhes ferramentas para que o pudessem fazer.
Apesar de lhe dizerem que a tecnologia “era só para rapazes”, acabou por seguir esse caminho.
Sim. Estudei Ciências Computacionais na universidade. Ainda antes de acabar o curso, consegui o meu primeiro trabalho numa companhia de software. Depois disso, passei por dois bancos, onde, para além de ser a única programadora, era a única mulher. Na altura não me apercebi do quão grave era o problema. Enquanto trabalhei na empresa de software já sofria todos os tipos de discriminação, mas pensava que, assim que fosse trabalhar para uma organização maior, as coisas iriam melhorar. Só quando lá cheguei é que percebi que era a única mulher. Mesmo quando recebi o salário e me deram o valor mais baixo, não negociei. Nem sequer sabia que podia negociar. É por isso que é importante termos pessoas como exemplos a seguir e mentores, que nos guiem o caminho. Sempre quis abandonar estes trabalhos, porque era solitário e muito difícil. Felizmente arranjei forças para continuar, mas nem toda a gente o consegue fazer.
E é isso que fazem na Soronko Solutions, dão “exemplos a seguir”?
Desenvolvemos competências em todos os nossos programas, mas cada um é dirigido para públicos diferentes. O “Tech Needs Girls” e “Woman in Digital Skills” são para mulheres. O “Growing STEAMS” é dirigido a rapazes e raparigas em zonas rurais e o “Apps for Disabled” funciona para pessoas surdas. Em cada um destes grupos, treinamo-los para que possam resolver problemas, através da criação de tecnologia.
Nos programas dirigidos para mulheres, primeiro que tudo, trabalhamos a auto-estima. Expomo-las a exemplos, outras mulheres da tecnologia que estão a sobressair nas suas áreas, não só no Gana e no continente africano, mas em todo o mundo. Depois, tentamos oferecer-lhes oportunidades de trabalho. Vamos falar com as empresas para que possam diversificar os seus talentos tecnológicos e incluir mais mulheres. Para além disso, fazemos por conseguir bolsas universitárias para raparigas. No entanto, no contexto destes dois países, onde as raparigas vivem em comunidade, é insuficiente treiná-las para programar isoladamente. Muitas destas comunidades não percebem a importância de educar uma rapariga e poderão pô-la de parte, pelo que também trabalhamos com as localidades para que apoiem estas jovens.
E quanto aos outros dois programas, o “Growing STEAMS” e o “Apps for Disabled”?
No “Growing STEAMS” ensinamos competências de ciências, tecnologias, engenharias e matemática. É um projecto onde vamos às comunidades rurais para expor rapazes e raparigas a tecnologias digitais e a formas práticas de perceber ciência. Infelizmente, o sistema educacional do Gana é baseado em teoria. É feito para que as crianças passem nos exames, não para que pensem em como resolver um problema. Para eles, as ciências são teorias que se lêem, não percebem como podem ser usadas diariamente. Para nós, na Soronko Solutions, este programa passa por tornar as ciências mais práticas mas também por expor as pessoas das comunidades rurais às tecnologias digitais, para que não fiquem para trás.
Quanto ao “Apps for Disabled"… No meu país, as pessoas com deficiência são quase como que escondidas da sociedade. Não têm forma de se expressar e atingir o seu potencial máximo. Só porque se tem uma deficiência não significa que não se possa ter uma plataforma e a oportunidade para ser o melhor possível. Por isso, começámos com uma aplicação que convertia texto em linguagem gestual. Depois, passámos a ensinar código a crianças surdas, para que pudessem criar soluções que funcionem da sua perspectiva.
Porquê esta preocupação em ensinar código?
Primeiro, porque código é a linguagem do futuro. Depois, porque permite resolver problemas, pela forma como funciona. Em código podemos desmembrar um problema começando com um algoritmo, que é uma série de passos para resolver esse problema. Pode-se pensar em qualquer problema, por exemplo, como é que consigo fazer com que este teleférico se mova [diz, apontando para o teleférico do Parque das Nações]. Depois pensa-se como resolver essa questão e cria-se a tecnologia para automatizá-la. Para mim, o código desenvolve competências para fazer automatização, que torna a vida melhor e mais fácil. Esta transformação digital está a mudar os sistemas de educação, da saúde… É uma ferramenta que permite desenvolver a criatividade.
Com tudo isto, porque é que é necessário incluir estes grupos, principalmente as mulheres, na área da tecnologia?
No meu país, a desigualdade de género nesta área decorre de uma condição social que declara que as ciências são para os rapazes e a moda para as raparigas. Existe também a percepção de que a tecnologia é difícil. É tão dominada por homens que as mulheres não acham a área interessante. Há ainda o preconceito de que quem vai para tecnologias será socialmente estranho, que não pode ser divertido e criativo. Para as mulheres acresce o facto de se dizer que será difícil encontrar um marido, porque estará sempre atrás de um computador. As mulheres precisam de ter outras mulheres como exemplos nesta área, precisam de perceber que a tecnologia não as define enquanto pessoas. Se têm uma paixão, a tecnologia pode ser uma ferramenta para a amplificar.
Se as mulheres não forem incluídas nesta área, o que vai acontecer é que a tecnologia criada terá apenas a perspectiva masculina. Isso é um problema, porque tanto homens como mulheres têm diferentes experiências, percepções e desafios. Se tivermos apenas homens a criar novas tecnologias, as mulheres e raparigas serão novamente marginalizadas e a revolução digital terá os homens que criam a tecnologia no centro, a controlar o percurso das restantes.