Quarteirão da Portugália: uma oportunidade para Lisboa
Construir a cidade de forma participativa, debatendo publicamente as decisões de urbanismo, é um sinal (raro) de maturidade e vitalidade democráticas.
Durante três anos coordenei o Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária da Mouraria, da Câmara Municipal de Lisboa (CML). A requalificação da Mouraria trouxe emprego e vitalidade económica, inclusão social e diversidade, melhores infraestruturas públicas e reabilitação do edificado, uma oferta cultural permanente, melhores índices de segurança e fruição do espaço público e, até, instituições e moradores mais participativos. Para muitas famílias locais, está mesmo a traduzir-se numa efetiva mobilidade social ascendente. Hoje, misturam-se na Mouraria todos os tipos de classes, credos e estilos de vida.
A experiência adquirida com o projeto da Mouraria e a minha condição de cidadão de Lisboa, interessado numa cidade aberta, dinâmica e inclusiva, levaram-me a participar numa sessão na Assembleia Municipal de Lisboa (AML) para apresentação e debate público do projeto de requalificação do quarteirão da Portugália. Sei bem o quão relevante poderá ser requalificação do quarteirão da Portugália para o bem-estar da população residente e circulante da Av. Almirante Reis. À sua escala, há potencial para que ocorra nesta zona uma dinâmica semelhante à que se vive na Mouraria. Ou seja, trata-se de uma rara oportunidade de desenvolvimento local no centro de Lisboa.
Construir a cidade de forma participativa, debatendo publicamente as decisões de urbanismo, é um sinal (raro) de maturidade e vitalidade democráticas. Sem debate, dificilmente se chega a uma cidade justa, inteligente e partilhada. Antes desta sessão na AML, já a CML havia promovido uma consulta pública online sobre o projeto e houve vários debates públicos, na freguesia de Arroios, na Ordem dos Arquitetos e na Faculdade de Arquitetura.
O projeto de requalificação do quarteirão da Portugália apresentado na AML é já o terceiro. Houve um primeiro projeto de 2001, com revisão em 2007, que passa por aprovações em 2005 e 2010, e que previa uma área de construção de 30.000 m2, em condomínio fechado, cuja obra teve início em 2010, mas que a crise suspendeu. Em 2016, um novo promotor decide abdicar desse projeto e reiniciar o diálogo com a CML, promovendo um concurso internacional de arquitetura em 2017 (naturalmente, enquadrado pelas regras estabelecidas pelo novo Plano Diretor Municipal de Lisboa de 2012).
Nasce então um segundo projeto, da autoria do atelier português ARX, vencedor do concurso. Este novo projeto rompe com o anterior, uma vez que abre o quarteirão ao exterior, abdicando da lógica de condomínio fechado. Ele inclui 85 apartamentos para venda, destinados à classe média, 180 apartamentos para habitação de convivência (co-living), para arrendamento, áreas para co-working, espaços públicos para atividades culturais, espaços comerciais, lugares de estacionamento para moradores do bairro (cedidos a preços EMEL) e diversas zonas verdes, no topo dos oito edifícios previstos, e não só. No total, a área de construção é agora de cerca de 28.500 metros quadrados, ou seja, cerca de menos 1500 metros quadrados do que o projeto inicial.
Mas não só este segundo projeto é substancialmente diferente do primeiro, como da consulta pública efetuada recentemente resultou um conjunto de sugestões de melhoria, que foram voluntariamente valorizadas e adotadas pelo promotor. Por exemplo, diminuir a altura do edifício mais alto (de 60 para 49 metros) e alterar o tipo de créditos de construção obtidos. Será de mencionar que estes créditos, previstos no PDM, se obtêm como contrapartida de integrar aspetos de interesse público no projeto – por exemplo, requalificar património histórico, neste caso uma antiga fábrica de cerveja. Foi após estas alterações, decorrentes da consulta pública, que chegámos ao terceiro e último projeto, apresentado recentemente na AML.
Naturalmente, os processos de desenvolvimento territorial trazem mudanças, que nem sempre são compreendidas ou da satisfação de todos. Porém, julgo que todos estaremos de acordo quanto à necessidade urgente de se encontrarem soluções de habitação para a classe média em Lisboa, desde logo porque a qualidade de vida e a sustentabilidade do nosso futuro se encontram no centro das cidades. É no centro que se tem acesso a livrarias, cinemas, galerias, jardins, cafés, concertos, infraestruturas para desporto, comércio, meios de transporte, pessoas e comunidades diversas. Por outro lado, só quem vive no centro pode adotar soluções de mobilidade sustentáveis, isto é, andar a pé, de bicicleta e de transportes públicos pouco poluentes.
Passei a minha adolescência, nas décadas de 1980/90, num bairro periférico de Lisboa, achando que o centro era só para os ricos e os pobres. Quantas vezes não vim a Lisboa apenas comprar um disco e ver a coreografia das ruas. Os bairros da classe média das periferias urbanas eram, como se dizia na altura, urbano-depressivos e a qualidade de vida de quem lá vivia pouco mais do que aceitável. Faço votos, por isso, que, no quarteirão da Portugália, a boa cidadania se encontre com a boa arquitetura, a boa política e o bom investimento.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico