Janelle Monáe mais humana do que nunca no último dia do Super Bock Super Rock
Na noite de sábado fechou-se a edição de 2019 do Super Bock Super Rock também ao som de Superorganism, Migos, Masego, ProfJam ou Mike El Nite.
“Para bazar vai ser a maior coça da história, boy”, comentava-se entre um grupo de amigos na interminável fila para o Multibanco durante a tarde. Afinal, tinha havido problemas nesse departamento no primeiro dia, seria de esperar que se repetissem no último. Apesar do público presente para ver o trio norte-americano Migos, tal acabou por não acontecer, pelo menos para o PÚBLICO, na noite de sábado, o derradeiro fôlego da edição de 2019 do Super Bock Super Rock, a primeira no Meco desde 2014.
Ao final da tarde, no palco EDP, o brasileiro Rubel apresentou-se ainda ao sol, tal como parte da sua banda, incluindo a secção de sopros, de gorro vermelho à Steve Zissou, o protagonista de Um Peixe Fora de Água, de Wes Anderson. O responsável pelo êxito de telenovelas Quando Bate Aquela Saudade, cuja letra a maioria do público sabia de cor, estudou cinema em Austin, no Texas, e parece querer deixar isso bem claro. Por esse mesmo palco passou, mais tarde, o indie pop lúdico dos britânicos Superorganism, marcado pelo espírito de festa faça-você-mesmo, os saltos dos três membros do coro e as conversas com o público da vocalista Orono Noguchi, e Masego, o músico de origem jamaicana que une r&b, trap, soul, etc. e interpretou Sensual Seduction, de Snoop Dogg, com o bom senso de reconhecer que, pelo menos nesse caso, a versão censurada bate aos pontos a original.
Dos nomes nacionais de rap do cartaz, divididos entre três dos palcos, só Estraca, no palco LG, não trouxe um baterista para o palco – horas antes, no mesmo sítio, TNT tinha teclas, baixo, uma vocalista, um baterista e um DJ para uma actuação sólida e polida de festival.
Foi a ProfJam, acompanhado pelo DJ e hypeman Mike El Nite, que viria actuar com vários convidados mais para o fim da noite no Palco Somersby, que coube estrear, ao final da tarde, o palco principal, dando lugar a uma Janelle Monáe em estado de graça. A norte-americana, dada ao r&b, à soul, ao funk e ao rap ocasional, entrou em cena ao som de Also sprach Zarathustra op. 30, de Strauss, a remeter para 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, muito em linha com a fixação da cantora em ficção científica. Crazy, Classic, Life deu início a um alinhamento marcado por temas de Dirty Computer, o terceiro e mais humano disco da também actriz, com inúmeras mudas de roupa, incluindo as calças em forma de vulva do vídeo de PYNK e as suas dançarinas, nada disto visto sob o prisma do olhar masculino.
O fantasma de Prince, que actuou no mesmo festival em 2010 – e provocou intensos engarrafamentos – e era, além de herói, mentor de Janelle Monáe, pairou no ar, seja pela influência quase sempre presente nas guitarras e nalgumas teclas, pela abertura com que a sexualidade, ultra fluida, é agora tratada por ela, e por a própria o ter mencionado explicitamente: “Nós homenageamos Prince esta noite”. Outro espírito foi o de Michael Jackson, evocado pela silhueta da cantora a dançar como introdução de Make Me Feel – que soou ainda mais Prince do que em disco. É algo que não cai assim tão bem no ano de Leaving Neverland, o documentário sobre os abusos da lenda da pop.
No final, James Brown, cuja influência marcou a primeira parte da carreira a solo da cantora, foi evocado em Tightrope, com direito aos golpes de sopros que eram característicos do padrinho da soul. Antes, Monáe deixou espaço para dizer que está farta de “homens cisgénero brancos a tentarem dizer-lhe o que fazer”, fazer proclamações anti-Trump, pró-black lives matter, pró-pessoas transgénero, pró-mulher, pró-imigração, pró-estranheza e ser-se como se é. “Hoje à noite quero criar memórias”, dizia ela a dada altura. Criou: Janelle Monáe é cada vez mais ela, e cada vez melhor.
Durante essa actuação, um drone filmou o público, mostrando que a concentração de pessoas junto ao palco principal não era o que seria expectável para um concerto destes. A organização fala em 30 mil pessoas, e muitas delas pareciam estar a jantar ou a preparar-se para a estreia em território nacional de Migos, o trio de rap/trap familiar de primos e sobrinhos de Lawrenceville, Georgia, que chamou muito mais pessoas para junto deles.
Em palco, primeiro, e já depois da hora marcada, o comandante dos pratos, o também produtor DJ Durel, a passar canções como Sicko Mode, de Travi$ Scott. Takeoff, Offset e Quavo, os rappers, apareceram ao som da remistura de I Got 5 on It, o clássico dos anos 1990 do duo de Oakland Luniz, feita para a banda sonora de Us, o filme de Jordan Peele, que deu lugar a MotorSport, colaboração com Nicki Minaj e Cardi B. À frente deles, fumo, fogo e pirotecnia. Atrás, vídeos de pombas brancas que não destoariam no meio da violência de um filme de John Woo. Sólido e divertido, foi um contraste grande com os gestos políticos de Janelle Monáe.