Rasura da memória e democracia
É obrigação do historiador com sentido do social e da equidade democrática opor-se frontalmente a este trabalho de negação.
Vivemos uma inquietante vaga de rasura da memória projetada a partir do apagamento, da reescrita e da trivialização de episódios da história. Uma parte produzida de forma consciente, com objetivos políticos precisos, resultando a outra apenas da leviandade, da indiferença ou da ignorância. Por isso, o vínculo entre história e memória está na ordem do dia, seja para quem aproxima estas duas categorias de representação do passado, seja para os que pretendem a sua separação. Olhar com sentido crítico e pragmatismo a relação entre ambas requer um banho de realidade.
Em 2015, duas fundações francesas de investigação divulgaram os resultados de um inquérito subordinado ao tema Mémoires à venir. Envolveu cerca de 32 mil jovens de 31 países – Austrália, Canadá, Estados Unidos, Japão, Índia, Israel, Rússia, Turquia e quase toda a Europa –, com idades compreendidas entre os 16 e os 19, e visava conhecer aquilo que os cidadãos educados já neste milénio retêm dos grandes acontecimentos do século XX, com a particularidade de terem sido colocadas as mesmas questões a pessoas de regiões e culturas muito diversas. Os acontecimentos mais referenciados foram aqueles que incorporaram uma dimensão traumática: o Holocausto, as bombas atómicas sobre o Japão e as duas guerras mundiais. Dos episódios mais recentes, destacaram-se os que em 1989-1991 envolveram a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética.
A importância conferida no inquérito a estes momentos relaciona-se com o relativo êxito das políticas de memória levadas a cabo em alguns Estados, onde com o apoio do conhecimento histórico foi possível assegurar uma relação de continuidade com o passado recente. Todavia, nem tudo nas respostas dos inquiridos foi positivo. Parte delas fez sobressair a chamada “memória negativa”, ao demonstrar – sobretudo na Hungria, na Croácia, na França e na Alemanha – uma tendência para a rejeição das recordações incómodas que pode ser associada ao ressurgimento dos nacionalismos e a formas de revisão ou de negação do passado. Daí a necessidade, se pretendermos impedir que a deriva de silenciamento se generalize e se torne uma inevitabilidade, de rejeitar, como perigoso logro, a separação entre memória e história que, em nome de uma retórica “apolítica”, alguns historiadores conotados com a direita se esforçam por difundir nos meios académicos e junto das novas gerações.
Quando, no meio profissional da história, se escuta que esta é “um saber neutro, fora da política»” a reação só pode ser de assombro, pois estas afirmações ignoram debates e conclusões com oito décadas. Marc Bloch, o fundador da Escola dos Annales, torturado e fuzilado pela Gestapo, defendia já, num texto de 1941 saído em Apologie pour l’Histoire – livro ainda utilizado em universidades como introdução ao ofício de historiador –, que o problema epistemológico da disciplina não é apenas de natureza científica, mas comporta também uma dimensão cívica e moral, tendo quem a pratica responsabilidade social de “prestar contas”. Caio Boschi reconhece neste processo a importância instrumental da memória, que não aceita como algo inerte, frisando que “o que lembramos e o que esquecemos pode servir à libertação humana, mas também pode contribuir para a servidão, para o domínio de determinados grupos”. Não podendo nem devendo ser depreciado por quem se ocupa com a leitura do passado.
O “dever de memória” intervém aqui como instrumento da necessidade de olhar o passado traumático, estudado e transmitido pela história, enquanto algo sobre o qual, face ao sofrimento das vítimas, aos crimes dos seus algozes e às circunstâncias que os determinaram, a interpretação exclui a indiferença moral. Responsabilizando Estados, grupos e indivíduos por episódios passados, e trabalhando, como sugeriu Primo Levi, para que não se repitam no futuro. Se história não é apenas memória, se não se aceita o testemunho subjetivo como critério único e inquestionável de verdade, também não pode ignorar-se a voz silenciada dos mortos, como aconteceu com a das vítimas do Holocausto reduzidas a cinzas, ou reduzir-se o passado à lógica dos vencedores e à celebração dos grandes eventos, via segura para o apagamento de boa parte dele.
O negacionismo histórico – conceito proposto por Henry Rousso para designar a contestação da veracidade do Holocausto que desculpabiliza o regime nacional-socialista alemão – tem incorporado outras realidades incómodas: o genocídio arménio, o Holodomor ucraniano e a realidade do Gulag soviético, o extermínio dos tutsis no Ruanda ou o pesadelo imposto no Camboja pelo khmer vermelho. Mais recentemente, o escamotear da dimensão do tráfico esclavagista europeu e árabe, ou a rejeição da existência da Ditadura Militar brasileira, com o seu negro cortejo de perseguição, tortura e assassinato. Neste contexto, é obrigação do historiador com sentido do social e da equidade democrática opor-se frontalmente a esse trabalho de negação. Porque perante o horror e o crime não pode existir imparcialidade ou indiferença. Além de que, no seu lugar de explorador, intérprete e transmissor do passado, de modo algum pode contemporizar com o silenciamento e com a mentira.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico