Transcaucásia
Vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa.
Recebi mensagens de remetentes que na minha percepção se mantêm vagamente incorpóreos, mas muito bem definidos na sua preocupação por uma possível indisposição minha, quer por indigestão de papel impresso, quer por fraca imaginação em aceder ao bodo dos empréstimos milionários da Caixa Geral de Depósitos, ou mesmo, como sugeriu um correspondente mais aflito, que eu tivesse sucumbido à queda combinada de pilhas de livros não escoradas. Não seria inédito nem fora de cogitação, mas, agradecendo o interesse e a disposição do vagar de todos os que me o fizeram saber, confidencio que a minha doença é toda moral.
Azias, só as das gorduras dos pratos esquecidos nos tabuleiros que almas gentis (e com os descontos em dia para a Segurança Social) me levam à biblioteca e que endurecem (as gorduras, não as almas, pois os vencimentos são pagos com a regularidade de um relógio de quartzo), enquanto eu, metaforicamente, salto de pedra em pedra, isto é, de livro em livro, para escapar, em espírito, às águas frias do ribeiro grosso do tédio, da brutalidade, da desilusão.
Aos que forem acometidos das mesmas moléstias, aconselho sempre a imersão na natureza, reparadora universal da higiene vital, incluindo dos que têm parafusos a mais ou a menos. Aos que se encontrarem arredados da companhia das árvores e dos ribeiros limpos (próprios ou alugados), recomendo, em doses medicinais, textos, músicas, canções, pinturas, filmes, fotografias, arquitectura, joalharia, cerâmica, escultura, objectos de arte, estilizações que falem connosco tal como algumas raridades falam comigo. E recomendaria animais de estimação se eles não tivessem, muitas vezes, o efeito de virar as pessoas ainda mais para dentro. E recomendaria pessoas, se as pessoas não andassem afectadas por uma febre de viver a vida ao máximo, deixando um rasto de terceiros, descartados porque deixaram de ser úteis ou divertidos.
Mas norteando-me: na semana passada, caminhando displicentemente na Transcaucásia, passei por uma casa isolada na montanha, um ponto de grande beleza num quadro de beleza ainda maior, quando me acenou um homem que se sentava no banco corrido do seu alpendre, enquanto entalhava uma figurinha com o seu canivete. Disse-me “bom dia!” e convidou-me a descansar um pouco da subida no seu banco, o que fiz, depois de descarregar a mochila pesada, que foi escorregando sobre a erva viçosa daquelas latitudes, montanha abaixo, até que caiu de uma ribanceira com uns bons 20 metros de altura. Não foi difícil calcular a profundidade do abismo, porque fui contando mentalmente os segundos que demorava a ouvir-se, no silêncio florestal serrano, aquele baque surdo que faz um peso morto. Mas, em vez disso, ouviu-se um gemido que eu tomei pela invectiva de um indígena, mas que poderia muito bem ser uma expiração de um animal exótico. Fazendo eu menção de ir averiguar prontamente os prejuízos causados, tranquilizou-me o meu anfitrião ao dizer-me sinteticamente que não valia a pena, pois não conhecia animal naqueles bosques capaz de se queixar em georgiano, e turistas tão-pouco, pois o georgiano só se fala na Geórgia. Aliviado de escrúpulos, pus a descansar o punhado de ossos com que tenho convivido toda a minha vida, quando o barbudo alvar me surpreende novamente, perguntando-me se sou português. Maravilhado com a sua perspicácia, admito que sim, e ele ri-se e aponta para o meu colete de viandante, em que uma pessoa amiga me tinha bordado a bandeira verde-rubra por cima do bolso superior esquerdo e, nas costas, a palavra PORTUGAL e a cara do Cristiano Ronaldo a toda a largura, e com uma parecença mais verosímil do que a escultura que assombra a porta do aeroporto do Funchal.
Em cinco minutos, fico a saber que estou na presença de um emigrante de Ponte de Lima retirado da vida comercial, que não era emigrante, mas “expatriado”, porque, embora nunca tivesse sido exilado pela antigo regime, preferia a designação que os ingleses davam aos emigrantes de marca maior, para evitar confusões com os portugueses do garrafão e do bacalhau aromático, não desfazendo...
Mas a maior surpresa viria da minha apresentação. Ao ouvir o meu nome, levantou-se de chofre, agarrou-me num abraço digno de jubileu, antigravítico e constritor, que me deixou a arfar por uns três quartos de hora e incrédulo de que a nova disposição que ele tinha dado às minhas costelas seria, um dia, compatível com um esboço de respiração ordinária. Ajudado pelo refrigerante ar de montanha, pela alegria contagiante do meu interlocutor, por um emplastro de papas de linhaça e por uma inalação de vapor de água com resina de coníferas, restabeleci-me. E, se não acreditasse já num Deus que não pareça muito mal aos olhos da opinião pública, teria passado a acreditar.
Por estranha coincidência, tinha encontrado ali, em plena Transcaucásia, um leitor da minha crónica, que me pediu, como se fosse simples, que lhe deixasse ficar, de recordação, as palavras mais bonitas da nossa língua. Achei-me incompetente para lhe prestar esse serviço, quer porque não conheço todas as palavras da língua, quer porque a beleza não é universal. Mas, querendo corresponder o melhor possível ao seu pedido, disse-lhe que achava que o melhor que uma língua pode ter, qualquer língua, é cultores que se esmerem na exploração das combinações das palavras que temos e das que conhecemos (sendo estas apenas uma parte daquelas), de modo a inspirar quem, como ele, procura o admirável, talvez para o defender da pobreza do lugar-comum, da solidão do corriqueiro.
Claro que não é possível apurar a palavra mais bonita ou a mais valiosa, mas o que o seu pedido me dava era a possibilidade de falar sobre algo de que usualmente não se fala quando as pessoas se juntam para falar. Os meus olhos acendem-se perante propostas de tão invulgar natureza, já que não são praticados entre nós desportos menores em confronto físico e impropérios, e maiores em comunhão de espíritos.
Se carmesim-de-alizarina é uma palavra (composta) que pode agradar pela sonoridade, mesmo a quem não sabe o que significa, outras há que trazem recordações concretas de sabores, sons, visões, sensações concretas de tal ou tal experiência em tal ou tal idade e outras ainda que têm os simbolismos perfeitos das coisas nunca vividas. Se a alguns ouvintes ou leitores conseguiremos chegar com algodão-doce ou ovos-moles, a outros só com sardinha, cabrito ou bacalhau, mormente assados na brasa ou no forno.
À função utilitária de darmos nomes às coisas de que precisamos e de que gostamos, fomos juntando a criação de exprimirmos o abstracto, o desconhecido, o incompreensível, o subtil. Fizemos evoluir o armamento e os maquinismos, mas menos a capacidade de nos expormos mais completamente a certos outros com quem compusemos a nossa intimidade, numa tentativa de nos completarmos com esses outros, na esperança de sentirmos deles que os completamos. Falhamos muito nisso. Mas vamos tentando, enquanto houver quem nos faça tentar.
Com a ajuda de milhares de anos e acrescentos de mentes brilhantes, vamos separando em fatias finíssimas falsos sinónimos e coleccionando interpretações temporárias do que será electricidade, radioactividade, gravidade, mas também vida para além da morte, antepassados das estrelas, alma, espírito, Santíssima Trindade, o Paraíso no Céu, o paraíso na Terra, o infinito, o absoluto, o eterno, o nada.
O que será melhor descobrir que existe, afinal: os discos voadores ou os tapetes voadores? O disco voador pode curar-nos da nossa crónica solidão cósmica, mas gerando, quiçá, subprodutos radioactivos que vão parar ao fundo do mar ou a países pobres; o tapete voador, pelo contrário, pode funcionar com a energia renovável e não-poluente da magia e dispensar os condutores. Resta saber se a magia vai resolver acertadamente os dilemas de que tanto se fala de atropelar uma criança em vez de uma mulher grávida, ou de um cidadão norte-americano em vez de 12 europeus, 87 asiáticos, 91 latino-americanos ou 123 africanos (acho que chamam a isto algoritmo).
Com estas elucubrações, o entusiasmo inicial do meu conterrâneo desterrado era agora um triste vestígio. Tentei conquistá-lo para as virtudes evidentes de verde-malaquite, vermelho-escarlate, amarelo-açafrão, lápis-lazúli, jade, safira, topázio, mas, em vez do deleite antevisto, via, com pesar, que a sua decepção crescente se traduzia em pequenos tiques nervosos que se desenvolviam mais depressa do que projectos de alojamento local em Lisboa e Porto, até que atingiu o espasmo do comerciante a quem se pergunta se se pode pagar com cartão de débito uma despesa de 50 cêntimos, contrariando o dístico microscópico exposto debaixo do balcão, entre as cebolas e as revistas de lavores, que diz explicitamente que não se aceitam cartões para pagamentos inferiores a 999 euros.
A cada proposta minha, o seu semblante (era uma daquelas pessoas com semblante que só certos escritores encontram) começou a dar sinais menos e menos cifrados de perturbação, de cordialidade hipotecada, de espiritualidade a azedar. Quando cheguei ao exemplo de terra-de-siena-queimada, já o caso estava para além de solução. Tínhamos atingido o ponto sem regresso, sem retrocesso, sem volta (o célebre “ponto de não-retorno” das traduções actuais), o que era atestado pelos tintos violáceos de zonas amplas do tal semblante, pelos olhos raiados, pela veia na testa que parecia pulsar sincronizadamente com uma sessão de hip-hop com base rítmica no bombo japonês e rimas ordenhadas de verbos nacionais da primeira conjugação.
Tendo tido formação como “agente de primeira intervenção em suporte básico de vida”, apliquei imediatamente os meus conhecimentos gritando “ocre!”, “ocre!”, apostando no efeito medicinal do redondo vocábulo.
Nada feito... Com manifesto despeito, atreveu-se a contrapor com batoque, ribombar, guta-percha, zarcão, opróbrio, galocha, albaricoque, sombreiro, goma-laca, nicles, trinca-espinhas e caixa-d’óculos, os últimos dos quais tinham propósitos ofensivos eminentemente pessoais.
Fiquei siderado. Naquele momento, poderiam ter-me dobrado em quatro e enfiar-me num sobrescrito de norma europeia, que o remetente não seria embaçado, por funcionário diligente dessa instituição particular de solidariedade social que são os actuais Correios, para o constrangimento de pagar sobretaxa por excesso de peso.
Fiquei sem pinga de sangue. Na versão internacional, servi de mostruário ao que queria dizer o letrista dos Procol Harum com aquela coisa do “a whiter shade of pale”. Ainda tentei puxar pela superior sensibilidade de redenção, lusco-fusco, prismático, subtileza, generosidade, dodecaedro, sublimação, gentil, miosótis, brinco-de-princesa, alvor, renascimento, impressão, pecheblenda, mas sem efeito.
O bruto respondeu-me com estipêndio, lantejoula, refrigerante, ceroulas, castanholas, bueiro, tranguelamango, matraca, escarrador, gosma, palafreneiro e guarda-livros. E, como plenitude semântica, rematou com as expressões “um evento disruptivo”, “desmaterialização de documentos” e “um carro seminovo”.
Foi o fim. Dei a mochila como irremediavelmente perdida e acelerei o passo pela encosta abaixo, no que fui auxiliado por um tropeção num ramo caído, e, a rebolar, fui-me sentindo cada vez mais próximo da civilização, do meu próximo mais familiar e do meu familiar mais próximo, mais afoito a enriquecer rapidamente e a deixar correr as palavras que o vento tecnológico ainda não levou.
O mundo, agora, é isto.
Correio Premente
De Felícia Andorinhão, lugar de Peixe Frio, freguesia e concelho de Monção: “Queria agradecer-lhe pela receita que deu no seu blogue do bolo dos ougados porque dei ao meu filho pequeno e ele passou a comer. Já não é preciso andar com ele no elevador para cima e para baixo nem dar-lhe um telemóvel em que esteja a dar a Patrulha Pata. Até o meu mais velho, que só comia pickles ou panquecas, passou a comer o seu arrozinho de polvo, sopa de peixe e açorda. Foi limpinho. E ainda ganhei uns trocos a ensinar a fazer o bolo dos ougados no YouTube. Sinceramente, não sei por que é que o senhor se está sempre a queixar de que não arranja dinheiro para consertar os seus telhados ou para instalar um simples aquecimento central para o seu palheiro, quando com uma receita destas e pondo uma saia mais curta se consegue ganhar a vida como youtuber. Eu, pelo menos consegui. No próximo sábado, lá estarei no Fórum Monção a tirar selfies com as crianças que os pais lá levarão para me verem. Até já deixei o meu emprego como analista financeira e pintei o cabelo de azul.”
Que bom saber disso. Está tudo a correr bem, portanto. Mas receio que comigo não resultasse. Por um lado, não tenho a necessária flexibilidade de espírito que me permitisse estar a gravar mensagens sobre inutilidades dirigidas a destinatários indeterminados. Por outro, nunca seria capaz de vestir uma mini-saia sem ser para fins puramente humanitários. E não, não tenho um blogue. É mesmo uma crónica.