Ferran Adrià: “Estamos num momento único em que qualquer país pode ter a sua arte culinária”
Ferran Adrià, o revolucionário chef que esteve à frente do restaurante El Bulli, passou por Lisboa para participar no Estrella Damm Gastronomy Congress e apresentou uma visão ambiciosa daquilo que a alta cozinha portuguesa pode ser.
Foi mais um discurso do que uma mesa redonda. E ainda bem. Oito anos depois de ter fechado o mítico restaurante El Bulli, no auge da sua popularidade, Ferran Adrià passou os últimos tempos concentrado no pensamento. De passagem por Lisboa, esta semana, veio preparado com uma reflexão sobre alguns dos aspectos que considera mais importantes hoje: desde a necessidade de compreendermos o papel da gastronomia na economia de um país à importância da existência de um saber teórico mais consistente à volta da gastronomia. E apresentou-nos uma visão ambiciosa daquilo que a alta cozinha portuguesa pode ser.elBulli
A terceira edição do Estrella Damm Gastronomy Congress, na passada segunda-feira, trouxe o chef — por muitos considerado a grande referência do mundo da gastronomia dos nossos tempos e o pai da cozinha molecular — a Portugal, pela primeira vez num contexto deste tipo. Durante a manhã, antes do evento, sentou-se à mesa com um grupo de jornalistas e falou num jeito descontraído, durante quase 40 minutos seguidos.
O chef catalão começou por sublinhar como, durante vários séculos e até há bem poucas décadas, a única grande referência da alta gastronomia no mundo era a França. “Em Espanha, desde 1994, fizemos ver, primeiro com o nosso exemplo [no El Bulli], e depois exportando isto, que qualquer país do mundo poderia ter arte culinária [ou alta cozinha, usando um termo mais comum hoje] do seu país”, comenta. Quando visitou Lisboa, em lua-de-mel, em 2002, lembra-se ter visto apenas dois registos: de um lado a “cozinha tradicional portuguesa”, do outro a “arte culinária francesa”. E acrescenta: “É o que havia em Madrid no ano de 1990 também.”
Agora, “estamos num momento único na história em que qualquer país pode ter a sua arte culinária”. E aquilo que o chef encontra na gastronomia portuguesa é bem diferente do que aquilo que existia há 17 anos.
Durante o fim-de-semana, passou por uma série de restaurantes, no Norte, começando pela Casa de Chá da Boa Nova, que classifica como “o restaurante mais bonito no mundo”, localizado junto ao mar em Leça da Palmeira, num edifício assinado por Álvaro Siza Vieira. Ao espaço de Rui Paula (actualmente detentor de uma estrela Michelin), mas também ao mais recente restaurante portuense Euskalduna (sem estrela) dava duas estrelas Michelin. Sobre a Marisqueira de Matosinhos, comenta, “não há cinco sítios em Barcelona” que se comparem.
Produtos “nível dez”
Pelo que viu, poderia haver uns 100 restaurantes estrelados em Portugal — “onde há 20, também há 100”, atira. Tal como não se esconde em falsas modéstias sobre o próprio legado, também não parece estar só a dizer-nos o que queremos ouvir. Se fala do potencial de Portugal é pela história e também pelos produtos “nível dez” que tem — um factor que considera comum Península Ibérica. “Os produtos do mar português são nível dez. Melhor não há. Pode haver igual…”, comenta.
Segundo Adrià, Portugal pode e deve olhar para os exemplos de países que nos últimos anos se têm afirmado pela sua gastronomia a nível mundial, como Dinamarca e Peru, onde o “apoio do governo foi muito importante”. “No Japão, o que venderam? Sushi e a maioria do pescado de piscicultura. O sushi triunfou. Na Itália a massa triunfou. Se querem codificar a cozinha tradicional portuguesa, para que um americano ou um japonês que venham aqui gostem [da comida], há que marcar bem a história”, comenta.
“Amanhã faria dois conceitos em Portugal: um seria um sítio de tempura [um prato com origens portuguesas], o outro seria como as marisqueiras de autor, com especiarias. Por favor, o governo que pague a um tipo ou tipa e que faça um sítio de tempura em Portugal, como é que não há um?”
Marketing com base no conhecimento
Trata-se, então, de ter uma boa estratégia de marketing? “Sim, mas não é preciso fazê-lo como se fosse algo feio. Para mim, é feio quando não é transparente. Quando dizem mentiras. O país tem de apoiar o turismo e a gastronomia. Estão muito ligados: 70% do turismo de qualidade quer come e beber bem. Se fizeres um marketing sincero, sem ser Disney, vais durar muitos anos. Se és meio transparente vais durar poucos.”
Tem de ser também um marketing com base num conhecimento aprofundado e transversal a várias áreas. E é nesse sentido que a elBulli Foundation tem trabalhado ao longo dos últimos anos. Um dos projectos que têm agora em mãos é a elaboração de um conjunto enciclopédico de 50 volumes — dos quais irão publicar 12 até ao mês de Dezembro.
Tal como “não há nenhum país no mundo que entenda que a gastronomia é economia” (Espanha “começa a compreender”), também “não se fez nenhum estudo sobre a sua história, a nível de estilos e movimentos em restaurantes com cozinha”, comenta o chef, apontando para um estudo que indica que o peso da gastronomia (incluindo desde agricultura à restauração) em Espanha representa 33% do produto interno bruto. “Não existe no mundo nenhum museu importante de gastronomia. Porque é que não pode estar aqui em Portugal?”, comentou mais tarde no palco do congresso.
Sabem o que é a cozinha molecular?”, questiona o chef, em jeito de provocação. “Não se preocupem, o melhor cozinheiro também não sabe”. Continua a lançar desafios: “E o José Avillez, tem um estilo? É o estilo do José Avillez. O caril é português? E a pimenta?”.
Tudo isto para dizer que, tal como existe a teoria de arte como disciplina académica, também na gastronomia deveria haver um maior rigor no que toca ao conhecimento — em vez de remeter os parâmetros dos diferentes estilos para o campo da opinião individual. “O conhecimento da profissão é importantíssimo. E depois conhecimento do teu país”, comenta.
“A primeira reflexão importante [da elBulli Foundation] é que o conhecimento conectado [entre vários saberes] ajuda a compreender melhor as coisas. A criação, criatividade, inovação é muito mais complexo do que ter uma ideia. Ter uma ideia é muito fácil”, comenta Adrià. “No El Bulli, que fechava seis meses, a missão era criar, não pensar. Pensávamos para criar. Agora, quero compreender o que é cozinhar — para isto tenho de contextualizar com outras profissões com outros sectores”, explica.
Garante que não sente a necessidade de pôr esse conhecimento em prática num restaurante próprio. “Os outros que ponham em prática. Sou mais feliz a ver o meu irmão [Albert Adrià, chef de uma série de restaurantes em Barcelona, entre eles o Tickets, com uma estrela Michelin]”, comenta. “Para que é que quero um restaurante? Ganhar dinheiro? Não. Fama? Já tenho fama — estão aqui e não tenho um restaurante. É mais positivo que todo este conhecimento possa chegar a mais pessoas.”
No início do ano, Adrià anunciou um novo projecto, o elBulli 1846, que deverá inaugurar em 2020. Não será um restaurante, mas sim um laboratório e um museu de inovação culinária. Pouco mais avança agora sobre o espaço de 6000 metros quadrados. “Ninguém imagina o que é, é incrível. Tens de vir vê-lo.”