O Berlinguer Ensemble
Como coordenador de toda a produção da Festa do Avante!, Ruben de Carvalho captava em cheio, com o seu proverbial sentido de humor, a ambivalência da situação.
Em 1973, no âmbito da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), constituiu-se o “grupo socioprofissional dos músicos”, bastante numeroso e representativo, que participou no programa eleitoral com o manifesto “Pela música em Portugal”. O texto foi elaborado coletivamente, mas continha dois contributos autónomos não assinados: um prefácio, de Fernando Lopes-Graça, e a proposta de criação de uma rede de “centros musicais”, de Jorge Peixinho. Este último compôs, a propósito, uma obra intitulada CDE (explorando a correspondência das letras CDE às notas dó-ré-mi da escala diatónica), que foi então gravada pelo Grupo de Música Contemporânea de Lisboa e editada em LP pela Sassetti.
Após o 25 de Abril, muitos dos músicos ativistas da CDE e outros que se lhe juntaram engrossaram a “célula dos músicos” do PCP. A primeira atividade marcante da célula, mormente no plano das relações internacionais, foi convidar nada mais, nada menos do que o compositor veneziano Luigi Nono, uma das referências fundamentais da chamada “vanguarda” musical (com quem, aliás, Peixinho trabalhara em 1960) e que era também conhecido pelo seu ativismo político, inclusive enquanto membro do Comité Central do Partido Comunista Italiano.
Graças à intermediação de Luís Cília, seu amigo pessoal, Nono visitou Portugal em Fevereiro de 1975. Deu entrevistas à comunicação social, participou em mesas-redondas, animou colóquios em Lisboa, Porto, Barreiro e outros locais, esteve no Alentejo, avistou-se com membros da direção do PCP e do MFA e, é claro, estreitou relações com músicos e outros artistas e intelectuais portugueses.
Quando, em 1976, se colocou a questão de saber que sugestões teria a célula dos músicos para a primeira Festa do Avante!, a realizar na antiga FIL, Luigi Nono não podia faltar no programa. Dados os condicionalismos dos espaços e meios disponíveis, foi logo aceite com entusiasmo a sua proposta de apresentar em Lisboa, através de diapositivos e fragmentos gravados, por ele próprio comentados, a “ação cénica” Al gran sole carico d’amore (“Ao sol do meio-dia carregado de amor”), que se estreara no ano anterior no Scala de Milão, com encenação de Juri Liubimov e direção musical de Claudio Abbado. O evento decorreu no auditório da FIL, a abarrotar de um público irrequieto, em permanente circulação.
Como se lhe fossem familiares as teses de Walter Benjamin sobre o “conceito de história”, Nono faz das tentativas revolucionárias falhadas o tema central da obra. Não heróis positivos, triunfantes, mas sim derrotas históricas de projetos emancipatórios, apresentam-se-nos em justaposição/sobreposição de imagens dialéticas que apelam à reflexão (riflessioni se chamam, de resto, os interlúdios instrumentais que pontuam a obra).
Como coordenador de toda a produção da Festa do Avante!, Ruben Tristão de Carvalho esteve em contacto permanente com a célula dos músicos, desde a fase de preparação à da realização do evento. Houve, naturalmente, vários encontros de trabalho, e foi numa dessas ocasiões que lhe ouvi, deliciado com a ironia, a “alcunha” com que – como numa inspiração súbita – designou a célula: “Berlinguer Ensemble”.
Na mouche! – dir-se-ia. Nessa dupla alusão ao Berliner Ensemble, fundado por Brecht em Berlim-Leste (no antigo teatro am Schiffbauerdamm, onde se estreara A Ópera de Pataco), e ao secretário-geral do Partido Comunista Italiano, Enrico Berlinguer, rosto principal do eurocomunismo, então no auge, Ruben captava em cheio, com o seu proverbial sentido de humor, a ambivalência da situação.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico