Porquê a endogamia universitária em Portugal?
O sistema de endogamia coloca as universidades portuguesas numa posição obsoleta, difícil de competir a nível internacional e de gerar mais impacto no sistema de inovação e no crescimento económico de Portugal.
O relatório da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência do ano letivo de 2015/2016 revela que as universidades em Portugal se caracterizam por uma endogamia acentuada dos seus quadros, constituídos na sua grande maioria por cerca de 70% de docentes que se formaram na própria universidade. Em algumas faculdades, estes valores ultrapassam os 90%.
Esta realidade é contrária, por exemplo, ao que se passa nos departamentos universitários norte-americanos, que possuem apenas cerca de 15% de docentes formados na universidade onde exercem funções, a maior parte deles contratados depois de uma temporada numa outra instituição. É como diz Charles Vest, ex-presidente do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e antigo conselheiro científico de Bill Clinton, “tentamos contratar os melhores docentes disponíveis no mercado, mas, em caso de igualdade, preferimos aqueles formados noutras universidades”. Esta estratégia tem como base a criação de um ambiente propício ao aparecimento de ideias criativas e inovadoras, geralmente possível quando existe uma diversidade de formações académicas, interesses científicos, culturas, assim como igualdade de género.
De facto, uma das consequências nefastas da endogamia dos quadros universitários é a criação de grupos de pensamento homogéneos, sem a independência intelectual adequada, onde se torna extremamente difícil explorar a capacidade crítica de cada elemento. Neste cenário, as ideias circulam circunscritas numa esfera reduzida de possibilidades, particularmente nos casos onde os docentes de um departamento descendem academicamente uns dos outros. Este conjunto de condições faz desperdiçar os talentos individuais e a capacidade potencial de criar sinergias que advém da diversidade. Desta forma, o sistema de inovação sai bastante penalizado.
Mas por que razão existe a endogamia no sistema universitário português? Uma análise cuidada demonstra que o problema reside essencialmente em quatro causas: 1) cultura de “clã”; 2) reduzida mobilidade profissional; 3) financiamento das universidades; e 4) Lei do Estatuto da Carreira Docente. Contudo, dependendo do tipo de contratação, estas quatro causas assumem pesos diferentes. No caso de uma contratação para professor auxiliar, a cultura de “clã” e a pouca mobilidade profissional são as razões principais. Os quatros fatores acima referidos assumem um papel essencial na contratação de professores associados e catedráticos.
Vejamos, em primeiro lugar, o aspeto cultural. O comportamento de “clã” pressupõe uma desconfiança subconsciente de qualquer pessoa proveniente de fora do seu círculo de amigos/colegas, assim como uma aversão ao risco. Como consequência, a postura “clã” faz tudo o que pode para se proteger e proteger amigos/colegas. Neste contexto, a amizade sobrepõe-se ao mérito e, portanto, as universidades preferem em muitos casos contratar pessoas com quem já têm relações profissionais. Para além disso, a pouco mobilidade profissional, por razões que se prendem com o círculo de familiares e amigos, assim como restrições financeiras, estimulam a endogamia.
As questões do financiamento das universidades e do estatuto da carreira docente estão intimamente ligadas. Um dos argumentos que promove a endogamia tem a ver com o facto de a promoção de um docente interno exigir apenas um pequeno aumento de salário à instituição. Por exemplo, a passagem de um professor auxiliar sem agregação a professor associado sem agregação poderá representar um aumento entre 80-400 euros por mês, enquanto a contratação de uma pessoa externa para o mesmo cargo representa um custo adicional para a faculdade de cerca de 3600 euros por mês.
Aliada a esta pressão financeira, o estatuto da carreira docente atual exacerba ainda mais o problema da endogamia. Mas porquê? Simplesmente, porque a regulamentação vigente exige a abertura de vagas para qualquer promoção na carreira docente. Dado que as vagas são esporádicas devido a questões financeiras, as universidades portuguesas têm nos seus quadros cerca de 90% dos docentes na expectativa de uma promoção, muitos deles há décadas. Ou seja, quando abre uma vaga (as candidaturas são a nível mundial), a decisão de contratar um docente externo em detrimento de um docente interno passa por assumir que todos os candidatos internos (selecionados e contratados previamente pelo departamento) sejam ultrapassados por um candidato externo. Esta opção de contratar um docente externo é, portanto, pouco frequente, uma vez que faria com que os docentes internos (em alguns casos, dezenas para cada vaga disponível) se mantivessem ainda mais tempo à espera de uma vaga (períodos de 10-20 anos são comuns atualmente), para além do custo adicional referente ao salário, que é significativo.
Este problema da endogamia universitária parece difícil de resolver, mas de facto não é complexo. Em primeiro lugar, é necessário desencorajar a contratação de professores auxiliares formados pela própria universidade, a não ser que os mesmos tenham já experiência profissional após o doutoramento noutra instituição. Em segundo lugar, é fundamental distinguir entre vagas e promoções. Isto é, as vagas devem abrir apenas para os candidatos externos à instituição, evitando assim a competição interna. As promoções, pelo contrário, devem ser exclusivamente para os docentes internos. Porém, para impedir que a atitude de “clã” interfira neste processo de promoções – a passagem de um professor auxiliar a associado ou de um professor associado a catedrático – deverá avaliar-se de forma rigorosa o currículo pedagógico e científico dos candidatos. Esta avaliação pressupõe a participação de vários especialistas com afiliações fora do departamento, da universidade e do país do candidato. Finalmente, para que a distinção entre vagas e promoções seja efetiva, é essencial que o financiamento relativo às novas contratações e o financiamento associado às promoções académicas tenham orçamentos próprios e diferenciados.
Em suma, este sistema de endogamia coloca as universidades portuguesas numa posição obsoleta, difícil de competir a nível internacional e de gerar mais impacto no sistema de inovação e no crescimento económico de Portugal. Este cenário cria assim barreiras à excelente rede de talentos que existe em Portugal e que pretende ter cada vez mais visibilidade na União Europeia.
Afinal de contas, o sistema universitário em Portugal só ganhará realmente solidez e vigor, assim como confiança de todos os envolvidos, quando a promoção académica estiver associada ao mérito curricular e todos tiverem as mesmas oportunidades de crescimento, num espaço que combata a endogamia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico