A Guerra dos Tronos e os Direitos Humanos: lições em seis atos [alerta spoiler!]
Que o manto de cinzas (ou de neve) não nos cubra a perceção do mundo real. É caso para dizer: “The real world is dark and full of terrors.”
Quanto do mundo ficcional de A Guerra dos Tronos espelha o mundo real, no que respeita a violações dos Direitos Humanos? Revisitemos alguns dos momentos mais acutilantes e que jamais olvidaremos.
1.º ato: Da pena de morte
A série é inaugurada com uma decapitação pela espada de Ned Stark, auspiciando o seu fado pelas mãos do despótico Joffrey. Em 2018, executaram-se, oficialmente, 690 sentenças de morte, em 20 países, com a China, Irão e Arábia Saudita a ocupar o pódio – acredita-se que o número de facto será triplamente mais elevado. A Bielorrússia é o único país da Europa que mantém a pena de morte, apesar do reiterado esforço desta organização internacional na sua abolição – veja-se a discussão no recente Congresso Mundial contra a Pena de Morte.
2.º ato: Do casamento (infantil) forçado
Sansa Stark tropeça em três casamentos, sem nunca autonomamente consentir. Com expressiva predominância em África, mas também na Ásia e na América Central e do Sul, uma em cada cinco raparigas é forçada a casar. Esta prática encontra fatores impulsionadores vários, como a desigualdade de género, a pobreza, as tradições, os conflitos armados e as emergências humanitárias, segundo uma resolução da ONU.
3.º ato: Da tortura
Nunca esqueceremos os perturbantes episódios em que Theon Greyjoy é cruelmente torturado, com sequelas irreversíveis, ou de como Jamie Lannister perde a mão. Em muitos países, a amputação de membros, apedrejamento, chicotadas, choques elétricos constituem práticas punitivas correntes. No mês passado, o Brunei aprovou, na sua perniciosa legislação penal, a amputação de membros corporais como punição do crime de roubo, ou 40 chicotadas no caso do crime de relacionamento sexual entre mulheres.
4.º ato: Da mutilação genital (MG)
A castração dos Unsollied ou de Lorde Varys não passou despercebida. Centenas de milhões de mulheres são vítimas destes atos perversos, em 50 países – veja-se o artigo do Dia Internacional da Tolerância Zero à MG Feminina. Já os dados quanto à MG masculina não parecem contabilizados, talvez porque a prática, pelo menos quanto à circuncisão, não é, equivocamente, tida como invasiva da autodeterminação genital. Ainda ignorada permanece, encoberta pela veste de cirurgia de normalização, a MG que se pratica nas crianças intersexo – que nascem com características sexuais ambivalentes. A recente resolução do Parlamento Europeu reprova esta última prática, aplaudindo as legislações de Portugal e Malta (as únicas da Europa que preveem a sua proibição)
5.º ato: Dos crimes contra a Humanidade e crimes de guerra
A Khaleesi, que libertou a Slaver’s Bay, dizimou milhares de civis em King’s Landing. Num tweet, a Amnistia Internacional comparou a devastação desta cidade ficcional com a de Raqqa (Síria): “Não são precisos dragões para destruir uma cidade.” E falaríamos ainda de Idlib ou Alepo, Gaza na Palestina, Rakhine em Myanmar, de Áden a Sanaa no Iémen.
6.º ato: Da ausência de participação política
A série encerra com uma ténue nota democrática, quando Sam Tarly propõe que Westeros passe a escolher o seu ou a sua governante. Apesar do passo visionário, sabemos que não é Westeros quem decide, mas os Senhores e as Senhoras ali reunidos. Respiramos de alívio, pois por cá o sufrágio é universal. Mas não devíamos. O direito ao voto não é reconhecido aos cidadãos com funções mentais limitadas ou alteradas, sujeitos a internamento psiquiátrico ou mediante declaração médica – opção legislativa discriminatória e reprovada pelo Comité sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Que o manto de cinzas (ou de neve) não nos cubra a perceção do mundo real. É caso para dizer: “The real world is dark and full of terrors.”