Estou sentado do outro lado do mundo. Em dias de chuva em mim, mal consigo vislumbrar qualquer cheiro que me toque lá do sítio de onde sou. Não há palmo e meio de claridade para tentar passar além das poças de saudade, que se vão amontoando pelo caminho arenoso, cheio de curvas e contracurvas, em que lhe falta uma berma da estrada que me permita parar para ver o dilúvio dissipar-se.
Os meus pés, que não me autorizam a assentar completamente no chão, ditam sempre dez para as duas, mesmo que a cabeça não os acompanhe e esteja matematicamente num fuso horário regado de mãos na anca a meia haste, cobertas de gritos de ordem que são a revolução maternal que não quero ganhar. Aceito a revolução porque sei que não há bastião que resista à cavalaria armada, montada a galope no conhecimento genuíno de quem me sente aos pontapés, desde a altura em que tinha menos unhas do que hoje.
Não é o buraco mais ou menos geométrico situado a Sul das emoções que nos une. É o desnorte da preocupação mútua, muitas vezes sucumbida pelo orgulho, mas preservada à luz das velas de qualquer dia menos azul. Dá o toque avermelhado de melancolia encoberta que arrasta o Sol quando este só se quer esconder atrás de uma peneira. É a luz de presença que manda os meus fantasmas para um sítio impronunciável em horário nobre e tão longínquo que faz a Cochinchina corar de vergonha.
Quando o céu escurece, os relâmpagos que me assolam são as frases feitas repetidas a compasso, com o exagero de quem cumpre o seu papel. Quase químico, que entra em erupção dia sim, dia talvez e me deixa sempre descansado de que aquela lava não me vai queimar. Arrastará tudo o que puder, não haverá buganvília que resista no jardim das desculpas mal semeadas. Uma por uma, leva-as todas ao ritmo alucinante de quem tem medo de carrosséis, mas trata a vida com duas palmadinhas nas costas, mesmo quando esta é tão madrasta que, por vezes, a faz sentir-se enteada. Nesta montanha-russa há loopings a mais, a cabeça fica virada para baixo para não estar sempre no ar, os pés calcorreiam todas as terras menos na sua. Que desvaloriza, para poder fazer florescer a minha.
Qualquer viela para onde me vire tem o seu sinal de cuidado a cada 20 metros de caminho mais sinuoso. Não há dois passos que dê sem uma advertência do código maternal, tão complexo que me limito a seguir enquanto rumino injúrias contra santos que ainda nem foram beatificados. Não houve exame que me fizesse decorá-lo de fio a pavio, sem este ficar curto. Vai sendo inovado a cada dia com um levantar de sobrolho e um inclinar de cabeça que ditam uma resposta errada. Neste não dá para copiar. Sou apanhado ainda antes de executar o gesto malandro que me leva pelo caminho mais fácil. Aqui não há facilitismos, existe apenas um “Faz o que eu digo, não faças o que eu faço”, soltado a cada argumento fora de tom que sopro em Mi menor, para não dar muito nas vistas.
Estou sentado do outro lado do mundo e a mesa da sala continua a ser a mesma, mãe. Os oceanos tormentosos que formam marés de distância são menos extensos do que a pirâmide de guardanapos sujos amontoados lado a lado com as conversas regadas de vida que trocamos mesmo calados. Na nossa casa, não há cá pão para malucos que não devoremos de empreitada, e tão bem que sabe comermos juntos.