O que ficou por condenar
A sentença do caso da esquadra de Alfragide é inédita, mas sabe a pouco
“Também nesta ocasião, um agente não identificado dirigiu-se por diversas vezes aos ofendidos nos seguintes nestes termos: “Pretos do caralho, deviam morrer todos!” “Agentes não identificados desferiram bastonadas, socos e pontapés nos ofendidos, ao mesmo tempo que proferiam as seguintes expressões: “Vá, pró caralho! O que é que vocês querem, pretos do caralho?”
“Quanto ao arguido H. […], dirigiu-se pelo menos ao ofendido R. […], nestes termos: “pretos do caralho, vão para a vossa terra!”
Excertos do acórdão do Processo 29/15.4PAAMD
Em 2015, 17 agentes da PSP da esquadra de Alfragide, não satisfeitos com os desmandos movidos por ódio racial, inventaram uma tentativa de invasão da esquadra para, durante horas, sequestrar, torturar e agredir física e verbalmente 6 cidadãos negros. Acostumados e respaldados na cultura de impunidade, ocultaram o seu crime incriminando as vítimas. Face à gravidade da situação, o Ministério Público abriu um inquérito e acusou-os de falsificação de autos, tortura, sequestro e ofensa à integridade física agravada motivada por ódio racial.
Porém, durante o julgamento, o Ministério Público deixa cair os crimes de tortura e discriminação racial. Este recuo foi uma machadada nas legítimas expectativas de justiça das vítimas e de uma sociedade decente, assim como coloca em causa a credibilidade do sistema judicial.
Durante o processo, alguns sindicatos das forças de segurança e estruturas dirigentes da própria PSP encetaram uma estratégia de descredibilização das vítimas e do Ministério Público. Foi visível o bullying jurídico contra vítimas e testemunhas em sala de audiência, como se fossem elas os réus, tentando intimidá-las e condicionar os seus depoimentos.
Pese embora as provas, os eloquentes depoimentos das vítimas e testemunhas, o despacho de pronúncia e apesar das evidentes marcas físicas e psicológicas das vítimas, o colectivo de juízes entendeu não ter matéria suficiente para condenar os criminosos pelos crimes de tortura e ódio racial.
Tal é lamentável e bastante revelador, pois prova que o sistema judicial, assim como a sociedade, continua a não dar a importância nem o valor moral, ético e jurídico que o combate ao racismo e à impunidade que têm grassado nas forças policiais reclamam.
Enquanto jovens negros são recebidos por bastonadas e balas de borrachas ao exercerem o seu direito de manifestação contra a violência policial e o racismo e posteriormente são condenados por motim, temos uma justiça complacente com agentes acusados de sequestro, tortura e racismo.
Como podem o Estado e o sistema judicial conviver com a probabilidade de as munições usadas na Cova da Moura não serem da PSP, como foi bem assinalado pelos procurador e presidente do colectivo de juízes durante o julgamento? E com a hipótese de existência de milícias dentro das forças de segurança? Quando um dos líderes da extrema-direita e reincidente criminoso diz ter muitos camaradas entre os elementos das forças de segurança, isso não causa preocupação? Como podem conviver com a perseguição orquestrada pela extrema-direita dentro da polícia contra Manuel Morais e os militantes anti-racistas, numa lógica de intimidação e estratégia de captura das instituições do Estado?
Admitir a existência de um padrão de violência racista e que esta é estrutural, não é dizer que “todos” os agentes são racistas, é tão só reconhecer - como já o fizerem outros com responsabilidade nesta matéria – que esta violência é estrutural.
Estarão a conspirar contra a justiça e a polícia quando, por exemplo, o procurador Alípio Ribeiro - ex-dirigente da PJ - e Manuel Morais - antigo Vice-Presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia - dizem respectivamente que “há uma justiça para portugueses e uma justiça para estrangeiros, uma justiça para brancos e uma justiça para negros” ou que “há elementos das várias forças de segurança que exteriorizam as suas ideias racistas e xenófobas, usam tatuagens e simbologias neonazis, pertencem a grupos assumidamente racistas, isto é do conhecimento de todos”?
E Constança Urbano de Sousa, ex-ministra da Administração Interna quando diz que “a polícia tem uma responsabilidade acrescida porque a sua missão é proteger-nos do crime. A PSP, ou qualquer força de segurança, não devem tolerar ao seu serviço pessoas que sejam condenadas por crimes”?
Ao dizer que a “condenação de polícias mostra cultura racista dentro da PSP” que é preciso combater, quererá Pedro Bacelar de Vasconcelos, presidente da Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, enfraquecer a autoridade do Estado?
O Estado e a sociedade estão dispostos a acompanhar o desafio da Ministra da Justiça para “desfazer esse medo estúpido de dizer que há racismo” na sociedade e também nas instituições, incluindo nas forças de segurança? - acrescento eu.
A sentença do caso da esquadra de Alfragide, apesar de inédita pelo facto de haver uma condenação a pena efectiva de prisão para um agente reincidente, fica muito aquém do expectável e desejável.
Perderam as vítimas por não terem conseguido que se fizesse justiça. E perdemos todos, porque continuamos a premiar a impunidade do racismo. Por tudo isso, torna-se obviamente inaceitável que estes agentes condenados se possam manter em funções, ter acesso a armas ou exercer qualquer tipo de autoridade, pois não é possível confiar em quem mentiu, forjou documentos, abusou dos seus poderes, sequestrou, humilhou e violentou cidadãos.
O que sucedeu no caso de Alfragide convoca para mudanças estruturais na organização das forças policiais, no recrutamento e formação dos seus efectivos e no escrutínio público e democrático sobre a sua actividade.
E prova, sobretudo, que são urgentes mudanças na forma como o racismo é debatido, percepcionado e tratado no sistema judicial e nas forças de segurança.
Oxalá que esta sentença faça jurisprudência e que o sistema judicial ganhe cada vez mais coragem para enfrentar o racismo onde ele é mais nocivo para a democracia, nas instituições.