Chico Buarque de todos

Desculpe-me, Chico, o egoísmo, mas ainda bem que não nasceu em Liverpool ou no Minnesota, ainda bem que o temos nosso, ainda bem que canta na língua do homem que dá o nome ao prémio que ganhou.

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Miguel Manso

Chico Buarque merece o Prémio Camões. Merece-o, porque, a única vez que se enganou no que escreveu foi quando disse que nem toda loucura é genial. No caso dele, é. Assim, no presente. Sempre foi, mas importa agora celebrar termos Chico Buarque nos nossos dias, apesar de ele ser imortal.

Já espero os académicos, lá do alto do seu fundamentalismo cansado, insurgindo-se contra a atribuição de um prémio literário a um músico. Insistem irritantemente em dividir e arrumar a literatura em gavetas fora de moda, nas quais só cabem romances, poesia, contos, ensaios, peças de teatro. Esquecem-se de que escrever é escrever. De que um mau romancista presta um pior serviço à literatura do que um óptimo letrista. Esquecem-se de que a única forma de respeitar a literatura é mantê-la viva e a única forma de a manter viva é desrespeitando-a. Como diz o Miguel Araújo, é mais uma questão de transdição do que de tradição. A literatura, como a música, o cinema ou a culinária só é cultura se for cultivada, se for vivida normalmente pelas pessoas, seja ao ler um livro ou a ouvir um disco. E isso só se consegue se largarmos a obsessão atávica que temos com a forma e olharmos ao conteúdo, se deixarmos de nos preocupar com regras da treta e percebermos o que as palavras querem dizer e procurarmos o que querem sentir.

É por isso que Chico é, sem dúvida, um grande escritor e não precisa de recorrer aos livros ou às peças de teatro para o provar. É verdade que o escritor de romances como Budapeste ou Leite Derramado, ou o autor de peças como Ópera do Malandro, seria um digno e justo vencedor de um prémio como este. Mas não foi apenas por isso que Chico ganhou. Nem só pelo requinte técnico com que construiu os versos e pela delicadeza com que os pôs à nossa disposição.

A razão do mérito está na canção, na criação de pessoas, de histórias para essas pessoas e de mundos para elas viverem, fossem eles ensombrados pela denúncia ou coloridos pela contagiante alegria brasileira. Está na capacidade de inventar tudo isto e parecer que não inventou nada porque todos nos identificamos com o que Chico canta, todos temos uma música de Chico que nos diz alguma coisa e que cantamos de cor sem pensar. A mim João e Maria incomoda-me, inquieta-me e mesmo assim eu ouço-a quase todos os dias, logo eu que gosto pouco de ser incomodado e inquietado. Não sei porquê, nem interessa, mas sei que isso só a literatura é que consegue. A boa, claro, a que não nos larga depois de a lermos. É por isso que Chico Buarque assenta bem ao Prémio Camões. Não importa o que Chico cante. Pode cantar o seu flamengo ou a ditadura que lhe sobra sempre eloquência. E em tudo o que escreve põe a alma de tal forma que quase nos dá medo que a tenha esgotado para a canção seguinte.

Quando algum lusófono se destaca, há sempre alguém que lamenta o azar de essa pessoa não ter nascido a falar inglês. Neste caso, não. Desculpe-me, Chico, o egoísmo, mas ainda bem que não nasceu em Liverpool ou no Minnesota, ainda bem que o temos nosso, ainda bem que canta na língua do homem que dá o nome ao prémio que ganhou. Assim chega-nos melhor e mais depressa. Obrigado por ter inventado a alegria e por ter a fineza de a partilhar. Que nunca mais pare porque aqui na terra queremos lê-lo.

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