2019: Odisseia na Educação
Os professores são essenciais à sociedade. Não se permitam ser representados por uma versão menor, sem visão, insubstancial e irresponsável da vossa classe. Vocês merecem melhor.
Os professores estão numa guerra em que, lamentavelmente e sem que pareçam imbuídos da lucidez necessária para essa compreensão, serão eles quem mais irá perder. Há mais de uma década que o discurso do corpo docente, através da sua máxima representação sindical, tem uma elocução inflamada, autocentrada e profundamente corporativista, que cultiva no espaço público a imagem dos professores como gente cismada nas suas carreiras e salários. Infelizmente, este desenho mal pintado, não só não é minimamente representativo, como estoura a sua respeitabilidade social, que é pedra angular para o eficaz desempenho das suas funções.
Os professores desempenham uma das missões mais críticas na sociedade, na propagação do conhecimento, nas suas diferentes áreas, mas sobretudo na estruturação de consciências activas e críticas, do ponto de vista intelectual e cívico. Assim, as escolas operam como motor formador de cidadãos conhecedores do mundo e interventivos nas suas gerações, com os professores como elemento condutor essencial para esse efeito. Quantos de nós não lembram aquele professor que ficou pela forma como nos cativou, nos desvendou o mundo sob uma nova perspectiva, ou aquela professora de uma simultânea pujança intelectual e elevada humildade que servirá, por tantos anos, como inspiração para a nossa vida, venhamos a nós a ser agricultores, empresários ou académicos. Porque isso é a escola, universal e transversal, estruturante do pensamento, mas também do carácter. Mais indispensável, considero até, é o papel dos docentes nos casos em que, no cenário possível, existem enquanto substituição representativa de pais ausentes, para crianças tantas vezes vindas de famílias desestruturadas ou sem qualquer suporte académico-intelectual. Os professores constituem, assim, a salvaguarda comunitária que o Estado garante a todos nós, para que sejamos mais que marionetas perpetuadas em ciclos de pobreza e ignorância.
Posto isto, dada a essencial função que estas pessoas desempenham na vida dos jovens, que é o mesmo que dizer na vida de todos nós, como é possível que desbaratem tanta da sua respeitabilidade e credibilidade públicas ao se fazerem representar, sindicalmente, de uma forma tão medíocre, indigna, desarticulada e, francamente, desprovida de qualquer bom gosto? Nos últimos anos, desde os tempos de Maria de Lurdes Rodrigues, os que me recordo, que a expressão pública dos professores quase se reduz à sua dimensão corporativista, advogando questões salariais e de carreira. As greves e os discursos são, aliás, feitos de forma tão primária, insistente e disruptiva que nem têm, no mínimo, a vantagem de serem eficazes, pela banalização e cansaço que criam. Contraste-se, por exemplo, com a parcimoniosa, e muitíssimo mais eficaz, abordagem das greves médicas na geração de substanciais dividendos negociais e manutenção da respeitabilidade social. Faz-me muita confusão pensar que os professores que, nas escolas, cimentam as bases de raciocínio, sensibilidade interpretativa e articulação da expressão oral e escrita nos jovens, sejam os mesmos que encontram no discurso de um homem como Mário Nogueira o seu melhor veículo de comunicação. Consigo enumerar 5 antigos professores meus que muito melhor representariam a qualidade do corpo docente e, com maior dignidade e elevação, defenderiam os seus interesses.
O exercício da docência vive, como todos os bons professores saberão, da qualidade do conhecimento e da capacidade de o transmitir, da sua habilidade e perspicácia em lidar com a heterogeneidade de jovens na sua frente, mas também de toda uma atmosfera social em que se cultiva, pelos pais e pela sociedade em geral, a ideia de que os professores devem ser tratados com respeito. Há vários anos a esta parte, os professores têm reduzido a sua imagem pública às referidas exigências corporativas, o que nestes últimos meses entrou particularmente em choque directo com as necessidades do restante país. Todos nos amiserámos no pico da crise, com centenas de milhares de pessoas a perderem o seu emprego, verem os seus salários minguados ou serem excomungados para a inevitável emigração. E todos estamos, colectivamente, a recuperar disso, enquanto país. Será justo revisitar o passado e aplacar falhas que ocorreram, quando isso é apenas feito para uma parte reduzida da população? É evidente que os professores trabalharam os mais de 9 anos, que estão agora petrificados no tempo, mas não é também evidente que ninguém reparará, retroactivamente, as constrições e sofrimentos que os restantes milhões de portugueses passaram nesse período? A pergunta é: então e todos os outros? Houvesse ciência para tal e embarcaríamos numa máquina do tempo para gizar a História de outro modo, mas o mundo é como é e o tecido do tempo move-se num único sentido. Prolongar esta contenda em favor dos seus benefícios só irá, ainda mais, alienar a sociedade da sua causa e, consequentemente, da sua função, contribuindo para um desgaste social, cujos prejuízos recairão primeiramente sobre os próprios professores.
O trabalho de docência é tão fundamental quanto ingrato, diga-se. Entre a carga horária excessiva, os entulhos burocráticos, os riscos de esgotamento e a diária invocação dos santos espíritos para lidar com a indisciplina na sala de aula, há bastante com que os professores têm de lidar para além de ensinar. E muito fariam, não só pela Educação como pela sua profissão, se encetassem uma promoção mais acesa e construtiva do debate público sobre reformas e transformações no sistema educativo, que pudessem aplacar estes problemas. No entanto, mais uma vez, não é isso que passa, não é sobre isso que os ouvimos. E o mais perverso e dramático é que o que passa para a opinião pública é uma enorme distorção, quando comparada com o real papel de enorme qualidade na estruturação dos nossos jovens. Teresa de Sousa dizia, esta semana, no PÚBLICO, que os professores “não gozam de uma grande simpatia nacional, para dizer o mínimo”. É, de facto, o mínimo que se pode dizer. E é neste ponto que me parece que alguma lucidez está ofuscada. Porque, perversamente, a perda de respeitabilidade só vai intensificar tudo aquilo que já os prejudica. Se por um lado perderão alavancagem social de reivindicação futura, por outro lado menos respeito e autoridade traduzir-se-ão em crescentes dinâmicas de desconsideração, tanto por alunos como por pais, o que, tal círculo vicioso, só agravará as questões de indisciplina e de esgotamento. Por extensão, mais turbulência e desrespeito implicarão um exercício de pior prática educativa, com todo o impacto, mais ou menos silencioso, que irá exalar dos jovens nos anos vindouros. Não conseguem ver isso?
Os professores são essenciais à sociedade. Em igual medida, o saudável exercício da sua profissão depende, em proporcionalidade directa, do respeito que a sociedade colectivamente tem por eles. Não se permitam ser representados por uma versão menor, sem visão, insubstancial e irresponsável da vossa classe. Vocês merecem melhor e a sociedade merece ouvir-vos e à vossa realidade. Inspirem-se no que de melhor nos ensinam e tenho por certo que reconquistarão o respeito e o prestígio que tanto merecem, dignos do quanto todos os dias nos dão.